O médico tem o dever de requerer todo o exame existente para conclusão de diagnóstico?

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É uma pergunta importante que diversos pacientes têm dificuldade de compreender e que envolve a relação entre benefício e malefício, pois, por vezes, nem todo exame possível de ser realizado trará benefício ao assistido, e a indicação indiscriminada de procedimentos pode acarretar, inclusive, indenizações ao profissional que recomenda o que é dispensável.

Tem de ser de conhecimento de todos os profissionais que tratam de saúde os princípios motores bioéticos que permeiam a atuação profissional: respeito à autonomia, beneficência, justiça e não maleficência[1].

O primeiro é relacionado à autodeterminação e à decisão livre de qualquer interferência externa. Ou seja, envolve direito de escolha, pressupondo que o paciente possa ter sua vontade respeitada, desde que devidamente esclarecido, permitindo sua tomada de decisão a partir da compreensão clara das causas e consequências de sua condição de saúde e do eventual tratamento.

Beneficência é a obrigação de que o médico deve agir para o benefício do paciente e aplicar um número de regras morais para defender e proteger o direito de outros, prevenir o mal, remover condições que causarão o mal, auxiliar pessoas com desabilidades e que estejam em perigo. São, portanto, duas faces neste princípio: agir sempre de maneira a maximizar os benefícios ao paciente e agir conforme a utilidade, refutando-se tratamentos fúteis e desnecessários. 

Distinguindo da maleficência, o princípio da Beneficência se apresenta, não somente como uma forma de evitar o mal, mas apresentar métodos e tratamentos para garantir o bem-estar do paciente, devendo ser visto como forma positiva de atuação, propondo medidas que afastam males que possam causar maiores prejuízos ao paciente.  Assim, enquanto a Beneficência é um agir para o bem (ativo), o da Não-Maleficência é um dever omissivo, é um não agir para não causar um mal.

Justiça é o tratamento justo, equilibrado e apropriado ao paciente, sendo vista como distributiva, ao passo que deve ser dado ao assistido a distribuição apropriada dos recursos médicos de atendimentos.

Para o nosso caso, a não maleficência, em conversa com o a beneficência, importa na obrigação do médico não causar mal ao paciente, traduzido em não mate, não cause dor ou sofrimento, não incapacite, não cause ofensa e prive os outros dos bens da vida[2].

Na prática o que se demonstra é que ao profissional cabe atentar aos benefícios e malefícios de um eventual tratamento, evitando aqueles que são um fardo inadequado para o paciente, razão pela qual objetificar a indicação de um procedimento seria, em tese, a própria violação a um caríssimo princípio da bioética.

Por exemplo, se o paciente apresenta sintomas que importam em uma investigação preliminar através de um exame de sangue (menos invasivo), concluindo, através dos resultados, que o tratamento é somente através de medicação e esse paciente apresenta melhora após ministrá-lo, justifica-se o encaminhamento desse paciente para realização de um exame de raio-x, ou uma tomografia computadorizada com contraste? Por óbvio que não.

Veja, em decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, publicada na Revista Eletrônica de Jurisprudência daquele Tribunal referente aos meses de setembro e outubro de 2023[3], o Poder Judiciário tem compreendido que a indicação de exames desnecessários é temerária, até porque “não é correta a indicação indiscriminada, em razão dos efeitos adversos” de um exame (Apelação Cível n° 1029408-45.2019.8.26.0554).

No caso, o paciente alegava que tinha sofrido um “erro médico” em decorrência de um corpo estranho encontrado em seu ferimento e que não foi verificada pela equipe médica; argumentando que deveria ter sido realizado outros exames mais invasivos, como radiografia, para fins de identificação do objeto.

Acontece que a perita do caso afirmou que a conduta médica adotada pela equipe para atendimento de ferimento traumático de pele e subcutâneo, estava de acordo com o que foi preconizado na literatura médica, e que fora a própria paciente quem informou, ao médico, a presença do corpo estranho, com registro no prontuário constando, expressamente, que a assistida foi quem forneceu a informação.

Assim, conforme se verifica da decisão, a presença do corpo estranho era duvidosa, tanto que o profissional apenas interrogou no prontuário com fins de realizar maiores investigações antes de fechar qualquer diagnóstico.

O procedimento da equipe foi, então, apresentada a lesão perfurocortante, sem sinais de infecção, corpo estranho aparente ou dor no movimento, realizou-se a limpeza e, após, a sutura, não se justificando outra medida além dessas, especialmente uma radiografia que submeteria o paciente, desnecessariamente, a uma dose de radiação.

Esse deve ser o equilíbrio entre beneficência e maleficência: é preferível uma atuação mais conservadora, ao invés de submeter o paciente a um tratamento desnecessário que não traria um real benefício ao caso concreto, vez que o corpo estranho poderia ser visível quando realizada a limpeza e sutura do ferimento.

Soma-se a isso o fato de que a perícia não indiciou qualquer incapacidade do paciente, não havendo que se falar em dano.

Mas e se os profissionais tivessem realizado o exame? Daí teríamos um problema a depender da situação.

Tratamento de saúde não é objetivo e deve ser vista caso a caso! Sempre vamos nos posicionar dessa forma, pois o que aconteceu em uma situação e o que foi julgado em uma ação, não pode se tornar a regra.

Caso esses profissionais tivessem tomado o caminho da excessiva prudência e realizado o exame, o Tribunal de Justiça de Brasília possui julgado que deve ser observado com cautela. Trata-se do Acórdão de n° 1263265, em que o suposto erro médico seria vinculado a quatro condutas realizadas pela instituição hospitalar requerida: (i) anexação de exame de terceiro em seu prontuário médico, (ii) indicação da medicação “AAS” mesmo quando a paciente/autora tinha intolerância ao dito fármaco; (iii) realização de cateterismo sem autorização prévia (sua ou de algum familiar); e (iv) medição diária de glicose desnecessariamente, visto não ser diabética.

Em relação ao item “i”, não ficou comprovado o fato aventado pela paciente. Quanto aos itens “ii” e “iv”, mesmo ciente da intolerância ao fármaco, a escolha dos medicamentos foi a menos danosa ao caso, não havendo que se falar em defeito na prestação de serviço, uma vez que, dada a urgência e possível agravamento do quadro clínico, as condutas devem ser tomadas com base na relação custo-benefício à saúde do paciente, além de que a medição da glicose era apenas precaução médica com o quadro. Teve-se, portanto, evidente respeito ao princípio bioético da Beneficência.

Contudo, o hospital foi condenado pela realização do procedimento de cateterismo sem o consentimento prévio, tratando-se de deficiência na prestação de serviços. O que se consubstanciou na decisão foi o fato de que o paciente tem o direito de ter suas dúvidas esclarecidas, para então decidir e consentir, devendo, no entanto, ser informado de seu estado, perspectivas, possibilidades, exames e tratamentos existentes, além de ser comunicado dos riscos advindos de cada um, salvo quando a comunicação direta puder provocar-lhe ou desequilíbrio psíquico, oportunidade em que a família, em razão do chamado privilégio terapêutico, será o alvo das informações.

A única exceção exposta pelo Acórdão a essa formalidade são os casos de urgência e emergência, ou seja, quando constatado o grave risco à saúde do paciente e o tempo não permitisse a demora.

Assim sendo, mesmo que o profissional tenha o interesse de realizar o exame, ponderando ser uma cautela excessiva, mas necessária, o consentimento informado não pode ser relevado, em outras palavras, explique tudo ao paciente, dê a ele documentos informando dos riscos e os benefícios do procedimento e colha o termo de consentimento escrito e assinado.

E quanto ao questionamento sobre o médico requerer todo o exame existente para conclusão de diagnóstico, tem-se que, na ausência de indicativos no quadro sintomático do paciente ou da não gravidade, não está o médico obrigado a solicitar exames que entenda como exagerados e/ou desnecessários ao quadro de saúde. É o que assegura os princípios da beneficência, no seu aspecto de utilidade, e da não-maleficência no seu cerne de não gerar um mal ao paciente.

Isso porque é o médico quem possui conhecimento e autonomia técnica para realizar anamnese e solicitar exames que entender cabíveis ao caso, não o paciente. Com o fácil e rápido acesso à internet, é comum que pacientes adentrem ao consultório já com exigências de exames e terapêuticas, o que evidentemente os coloca em risco, por serem desconhecedores da Medicina, e viola a autonomia médica.

O médico, então, não possui qualquer dever de atender às exigências descabidas e sem base técnica de pacientes, não estando compelido a solicitar exame desnecessário que coloque o paciente em risco, como uma radiografia sem indicação.

Na hipótese de existir discordância acerca da conduta que cada um entende como adequada, não há obrigação de se manter a relação médico-paciente, podendo ser rompida de imediato caso não haja urgência ou emergência. Contudo, lembre-se sempre que registrar tudo em prontuário, de forma detalhada, para que em caso de futura ação judicial ou administrativa seja possível comprovar a conduta adequada médica.

Se tiver em dúvida e não for um caso de urgência, consulte a equipe administrativa do hospital e, principalmente, a equipe jurídica.


[1] Varkey B. Principles of Clinical Ethics and Their Application to Practice. Med Princ Pract. 2021;30(1):17-28. doi: 10.1159/000509119. Epub 2020 Jun 4. PMID: 32498071; PMCID: PMC7923912.

[2] Varkey B. Principles of Clinical Ethics and Their Application to Practice. Med Princ Pract. 2021;30(1):17-28. doi: 10.1159/000509119. Epub 2020 Jun 4. PMID: 32498071; PMCID: PMC7923912.

[3] https://api.tjsp.jus.br/Handlers/Handler/FileFetch.ashx?codigo=151054

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