Uma a cada cinco pessoas no mundo sofre com dor crônica, segundo a Associação Internacional de Estudo da Dor, e muitas não respondem aos tratamentos hoje disponíveis. Em estudo publicado no Journal of Clinical Investigation, pesquisadores do Instituto Butantan e da Universidade de Stanford, dos Estados Unidos, desenvolveram um peptídeo que se mostrou capaz de diminuir a dor neuropática em modelos animais. A molécula foi sintetizada a partir da descoberta de uma mutação no receptor TRPV1 – responsável por captar estímulos nocivos de calor e a sensação de ardência da pimenta – que aumenta a resistência à dor sem prejudicar a função protetora. O peptídeo se liga no mesmo lugar do receptor onde ocorre a mutação, produzindo o mesmo efeito.
Devido à sua importância na regulação da dor, o receptor TRPV1 é um dos mais estudados nesse campo. Segundo a pesquisadora Vanessa Zambelli, do Laboratório de Dor e Sinalização, vinculado ao Centro de Desenvolvimento e Inovação (CDI), o primeiro passo foi fazer uma análise computacional das centenas de mutações desse gene em humanos e em aves. Isso porque as aves são conhecidas por sua resistência à capsaicina, composto presente na pimenta. Os cientistas identificaram uma mutação denominada K710, muito rara em humanos, como a mais promissora em testes in vitro.
“A partir disso, desenvolvemos animais com essa alteração genética e testamos em diferentes modelos de dor. Nós vimos que os camundongos modificados foram mais resistentes à dor, tanto à induzida pela capsaicina como à dor induzida em um modelo de neuropatia – equivalente a uma lesão no nervo”, explica a cientista.
Mas ainda era preciso verificar se a mutação não prejudicava as funções fisiológicas protetoras do receptor – controle da temperatura corporal, captação de calor nocivo e proteção do sistema cardiovascular e do sistema nervoso. Os resultados mostraram que todas essas atividades continuaram preservadas.
A construção do peptídeo
Uma vez demonstrado o efeito positivo da mutação K710, os pesquisadores buscaram uma forma de alterar a função do receptor de forma farmacológica, sem a edição gênica. “Nós desenhamos um peptídeo que se liga diretamente no local onde ocorre a mutação. É como uma chave e fechadura. Quando o peptídeo estabelece essa ligação, ele reduz a atividade do receptor”, afirma Vanessa. Da mesma forma que a mutação, o tratamento com o peptídeo foi eficiente para reduzir a dor nos animais.
O desenvolvimento dessa molécula em laboratório é o início do caminho para um possível novo tratamento contra dor crônica no futuro. Nas próximas etapas da pesquisa, serão feitos testes de toxicidade e o peptídeo será testado em outros modelos experimentais. Além disso, os cientistas vão trabalhar formas de melhorar a estabilidade, a duração da ação e a “entrega” da droga, para que ela possa ser administrada por meios mais viáveis (como via oral ou injetável).
O trabalho contou com a participação de Beatriz Stein, estudante de doutorado do Programa de Pós-Graduação em Toxinologia da Escola Superior do Instituto Butantan (ESIB).
Busca por tratamentos mais seguros e eficazes
Os opioides (categoria que inclui a morfina) estão entre as substâncias mais utilizadas para o controle da dor. Porém, em relação à dor crônica, nem sempre são efetivos. Além disso, podem causar uma série de reações adversas, como redução dos efeitos do remédio e dependência física, justificando a necessidade de terapias alternativas. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), cerca de 500 mil mortes no mundo por ano estão associadas ao uso de drogas, sendo mais de 70% relacionadas aos opioides – destas, 30% são decorrentes de overdose.
De acordo com Vanessa, existem muitos pacientes que não respondem bem aos fármacos atualmente disponíveis para dor, e o tratamento individualizado é uma estratégia que tem sido mais explorada. “Cada vez mais, a ciência busca compreender a dor relacionada a cada patologia. Entender como funciona, qual o mecanismo envolvido em determinado tipo de dor, quais as características genéticas de cada indivíduo, para tentar tratar os pacientes de uma forma mais individualizada.”
Matéria – Portal do Butantan