De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), bactérias multirresistentes poderão ceifar a vida de mais de 10 milhões de pessoas ao ano em 2050, o que corresponde a uma morte a cada três segundos. Uso indiscriminado de antimicrobianos e escassez global de novas drogas agravam essa ameaça das superbactérias.
Segundo o professor da pós-graduação de Farmácia Clinica de Endocrinologia e Metabologia no ICTQ – Instituto de Pesquisa e Pós-Graduação para o Mercado Farmacêutico, Edson Luiz de Oliveira, em 30 anos, ocorrerá um marco para a história futura da humanidade, pois se atingirá o pico da ocorrência de mortes causadas por bactérias resistentes a antibacterianos.
“Existe uma previsão para 2050 sobre as mortes provocadas por infecções causadas por bactérias resistentes a antibacterianos. Nessa data, na Ásia, seriam 4,7 milhões de óbitos, na África, 4,1 milhões, na América Latina, 392 mil, na Europa, 390 mil, na América do Norte, 317 mil, e na Oceania, 22 mil”, revela Oliveira.
Em 2019, a OMS indicou a resistência de bactérias a antimicrobianos como um dos problemas de saúde pública mais urgentes do século XXI. Para a agência multilateral, a resistência antimicrobiana é uma das dez principais ameaças à saúde pública global contra a humanidade.
Atualmente, a OMS estima que aproximadamente 700 mil pessoas morram todos os anos de infecções não tratáveis, causadas por superbactérias. De acordo com o órgão, em 2050, morrerá mais gente por ano devido a infecções resistentes a antibacterianos do que por câncer.
“A resistência a antimicrobianos faz parte de um processo evolutivo natural. Os maiores produtores de antibióticos são as próprias bactérias. Uma bactéria capaz de jogar um antibiótico no meio mata as outras que estão ali competindo por espaço e nutriente”, explicou em artigo para O Globo a microbiologista Natalia Pasternak, presidente do Instituto Questão de Ciência e pesquisadora do Instituto de Ciências Biomédicas da USP.
Segundo ela, genes que trazem imunidade a antibacterianos se transferem com facilidade de uma bactéria para outra, mesmo em espécies diferentes. “Os genes de resistência podem ser passados de ‘mãe para filha’, quando as bactérias se dividem, mas também, de forma muito mais efetiva – e preocupante – por transferência horizontal: bactéria ‘adulta’ para outra que esteja no mesmo ambiente”.
A microbiologista destacou que se houver um antibacteriano no meio de cultura ou no organismo do animal infectado, e em havendo bactérias naturalmente resistentes ali, logo se forma toda uma população composta apenas por resistentes, já que a população suscetível terá sido eliminada.
“Essas bactérias resistentes podem passar para frente os genes, inclusive para outras espécies do local, que podem até ser bactérias nativas, não patogênicas. Isso quer dizer que uma bactéria do nosso intestino pode carregar vários genes de resistência que ganhou ao longo da interação com outras bactérias e passá-los para espécies patogênicas que cheguem ali. Se isso acontecer, podemos acabar com uma bactéria multirresistente”, frisou Natalia.
Um dos efeitos da pandemia do novo coronavírus é o aumento do uso dos antibacterianos, apesar de eles serem indicados para menos de 15% dos casos. Entretanto, mais de 75% dos pacientes hospitalizados por Covid-19 têm recebido esse tipo de medicação, revelou o especialista da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) Marcelo Galas, durante um webinar sobre resistência antimicrobiana no contexto da Covid-19 organizado pelo Ministério da Saúde do Peru.
“Essa situação representa um problema de saúde pública por aumentar a resistência aos antimicrobianos, pois deixa o pessoal da saúde com menos possibilidades para combater as infecções que ocorrem na população”, frisou Galas. Ele ressaltou que o principal fator de resistência aos antimicrobianos é o seu uso indevido. “De alguma forma, o uso bom ou ruim produz ou induz resistência, e quanto mais utilizado maior a resistência”.
O controle dos medicamentos para bactérias é um dos pontos que os farmacêuticos, especialmente aqueles que atuam em hospitais, podem contribuir para evitar a proliferação de micro-organismos super-resistentes. “O farmacêutico precisa e deve se atentar para as terapias que envolvam essa classe de medicamentos, analisar sempre a cultura de exames, para saber a resistência ou sensibilidade do antibiótico [e demais classes de fármacos com ação contra bactérias] perante o micro-organismo, o tempo de uso correto do medicamento e a dosagem”, salienta o farmacêutico e professor da pós-graduação em Farmácia Hospitalar e Acompanhamento Oncológico no ICTQ, Leonardo Daniel Mendes.
“O farmacêutico deve prezar sempre pelo uso racional de medicamentos, principalmente os antimicrobianos, evitando assim o uso desnecessário e errôneo desses medicamentos e, claro, o surgimento de cepas super-resistentes”, enfatiza farmacêutico e professor da pós-graduação em Farmácia Clínica e Prescrição Farmacêutica no ICTQ, Rafael Poloni. “Além disso, o uso inadequado pode causar efeitos adversos e falha terapêutica, levando ao crescimento do micro-organismo e piora clínica”.
Faltam novos antimicrobianos
Além do problema causado pelo uso incorreto dos antimicrobianos, a OMS aponta que, devido a entraves científicos e econômicos, a falta de novos medicamentos para tratar infecções bacterianas pode agravar o quadro. Segundo relatório anual do órgão, os novos fármacos atualmente em desenvolvimento não são capazes de tratar as bactérias resistentes, conforme revelou o Jornal da USP.
No relatório de 2020 foram avaliados candidatos a drogas com ação antibacteriana em estágios de desenvolvimento clínico e pré-clínico em todo o planeta e concluiu-se que os países ainda não estão desenvolvendo os tratamentos de que precisam para conter o avanço das bactérias resistentes a medicamentos, que estão descritas na ‘Lista de Patógenos Bacterianos Prioritários’ da organização.
Atualmente, estão em desenvolvimento 43 medicamentos que, entretanto, não são capazes de conter as superbactérias descritas na ‘Lista’ OMS, que inclui 13 bactérias e que tem sido usada para informar e orientar áreas prioritárias para pesquisa e desenvolvimento desde 2017. O mapeamento anual da OMS busca priorizar e coordenar os esforços globais de pesquisa e desenvolvimento a fim de buscar soluções para a ameaça das bactérias resistentes. Mesmo com esse esforço nos últimos anos, o estudo da OMS revela que a grande maioria dos antibacterianos disponíveis no mercado é de variações de fármacos descobertos na década de 1980.
Ainda de acordo com o mapeamento, as perspectivas de mudança dessa realidade ainda são distantes, visto que apenas alguns antibacterianos foram aprovados por agências regulatórias nos últimos anos, sendo que existem alguns produtos promissores em estudo e desenvolvimento, mas apenas uma fração deles chegará ao mercado devido aos desafios econômicos e científicos.
O processo de desenvolvimento de novos medicamentos contra bactérias é caro e trabalhoso, conforme revelou ao Jornal da USP o professor do Departamento de Medicina Social da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP Fernando Bellissimo Rodrigues. “Para cada droga, de maneira genérica, que chega ao mercado como medicamento de sucesso, que passou por todas as fases de testes de aprovação de segurança, muitas vezes a indústria tem que fazer a triagem de até 10 mil compostos”.
Em comparação a outras classes de medicamentos, por exemplo, desenvolver novos antibióticos, que apenas serão usados em casos excepcionais de infecções e por um período curto de tempo, não é economicamente viável. “Por isso, as empresas estão deixando de investir na seleção, no desenvolvimento de novos antibióticos, a menos quando recebem incentivos estatais”, revelou Rodrigues.
Iniciativas abrem caminhos para novas drogas
O professor ressaltou, contudo, que algumas iniciativas – como da Fundação Gates, do National Institutes of Health, dos Estados Unidos, e da União Europeia – têm tentado compensar esses entraves com fundos públicos, financiando o desenvolvimento de novas drogas. Outras instituições também têm tomado atitude.
Pesquisadores do Instituto Wistar, instituição de pesquisa sem fins lucrativos localizada na Filadélfia, nos Estados Unidos, descobriram uma nova classe de compostos capazes de causar a morte direta de bactérias super-resistentes a medicamentos. A nova substância provoca uma resposta imune rápida, de forma simultânea, para combater a resistência antimicrobiana, conforme revelou o Estadão. A pesquisa foi publicada na revista científica Nature.
Segundo os cientistas, os antibacterianos existentes têm como alvo as funções bacterianas essenciais, o que inclui o ácido nucleico e a síntese de proteínas, bem como a construção da membrana celular e vias metabólicas. Porém, as bactérias podem adquirir resistência aos medicamentos por meio da mutação do alvo bacteriano contra o qual o antibacteriano é dirigido, inativando os medicamentos.
No estudo, os cientistas identificaram uma via metabólica que é essencial para a maioria das bactérias, mas ausente em humanos, tornando-a um alvo ideal para o desenvolvimento de antibacterianos. Essa via, chamada de metil-D-eritritol fosfato (MEP), é responsável pela biossíntese de isoprenoides, que são moléculas necessárias para a sobrevivência celular na maioria das bactérias patogênicas.
Fonte: ICTQ