OFTALMOLOGIA, OPTOMETRIA E A ADPF 131/DF DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

O que foi a ADPF 131/DF, suas consequências e as posições dos conselhos profissionais.

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O caso envolvendo oftalmologia e optometria diz respeito à possibilidade ou não dos optometristas em prescreverem lentes de contato e realizar exames oftalmológicos, além de instalarem gabinetes optométricos em casas de ótica. A questão foi avaliada pelo Supremo Tribunal Federal – STF, na Arguição De Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF131/DF.

Primeiramente, ADPF é uma ação apresentada junto ao STF com o objetivo de evitar ou reparar lesão a preceito fundamental resultante de ato do poder público, ou seja, simplificadamente, é uma ação levada ao Poder Judiciário quando há uma possibilidade de que a lei esteja afetando princípios e normas consideradas essenciais ao ordenamento jurídico, sejam elas normas implícitas ou explícitas na Constituição Federal. 

Assim, a legislação questionada na ADPF, além de proibir a presença de consultórios médicos e de optometristas em óticas, também não permite a realização de diagnóstico por não médicos sob a pena de exercício irregular da profissão, bem como proíbe a confecção de lentes sem prescrição médica.

No entendimento do Conselho Brasileiro De Óptica e Optometria – CBOO, os Decretos que legislam o assunto são bastante anteriores à Constituição Federal de 1988: Decreto 20.931 de 1932, em seus artigos 38[1], 39[2] e 41[3], e no Decreto 24.492 de 1934, artigos 13[4] e 14[5], estando, assim, desatualizados.

O CBOO argumentou que a optometria é uma ciência especializada no estudo da visão, especificamente para atuação dos cuidados primários da saúde visual e, na década de 30, quando editados os Decretos transcritos acima, buscou-se limitar a atuação dos chamados “práticos”, que eram verdadeiros curiosos, autodidatas. À época, não existiam cursos técnicos de optometristas, tampouco cursos superiores. Mesmo porque, inexistia a especialização de oftalmologista na própria medicina, tendo em vista que os primeiros programas de residência nessa área surgiram apenas no ano de 1976.

Com a evolução técnica, científica e educacional, o CBOO entende que os optometristas, com formação superior, são habilitados para detectar patologias oculares e sistêmicas, sendo certo que, na concepção do Conselho, deveria ser permitido a estes profissionais exercerem seus ofícios dentro das atribuições para as quais foram capacitados, especialmente para instalar consultórios e para proceder a avaliação de acuidade visual de pacientes, com a possibilidade de indicar meios ópticos adequados à correção de erros refrativos e adaptar lentes de contato, sem que isso gerasse denúncias e processos administrativos e criminais, com apreensão de equipamentos e interdição de estabelecimentos.  

Ou seja, o objetivo do processo, em suma, foi afastar a aplicação dos Decretos bem anteriores à Constituição Federal que proibíam optometristas diagnosticar e prescrever lentes e, ainda, que situassem seus gabinetes em casas de ótica.

Por outro lado, o Conselho Federal de Medicina – CFM entende que não há qualquer violação a preceito fundamental dos optometristas, sendo que, o que o CBOO pretendia era, na prática, permitir a seus profissionais que realizassem diagnósticos, o que, na visão do CFM, não poderia ser aceito, em virtude de a “diagnose exigir uma formação estruturada em matérias como lógica, estatística, anatomia, fisiologia, biofísica, patologia, propedêutica, parasitologia, fisiopatologia, imunologia, pediatria, obstetrícia e outras”; além disso, o próprio STF já havia se posicionado em decisão anterior que o diagnóstico é atividade privativa da profissão médica (Representação de Inconstitucionalidade 1056-2-DF, Rel. Min. Décio Miranda, DJ 26.8.1983) e que as ametropias (vícios de refração) não podem ser tratadas isoladamente, porque possuem estreita relação com várias doenças oculares, muitas vezes graves.

De acordo com o CFM, o mais relevante acerca do tema seria um “imprinting” equivocado aos pacientes que, ao se consultar com um optometristas, teriam se submetido a uma consulta oftalmológica, podendo, assim, incorrer em erro de prescrição e em possível agravamento de eventual doença, tendo em vista que optometristas não possuem qualificação técnica oftalmológica.

No fim das contas, o que se verifica é que os respectivos Conselhos de ambas as profissões buscaram, ativamente, a proteção do interesse de seus profissionais, seja com a provocação por meio da ADPF ao STF por parte do CBOO, seja pela defesa da categoria médica feita pelo CFM.

O trabalho dos Conselhos não deve ser voltado tão somente a emissão de certificados de capacidades a seus profissionais, mas a garantida da liberdade de exercício regular da profissão e regulamentação da carreira profissional, atuando em prol de cada uma de suas categorias com fins de garantir o exercício ético, moral e seguro do profissional.

O caso tratado pela ADPF é um exemplo claro do dever destas entidades, seja pela defesa dos optometristas, seja pela defesa dos médicos, que levaram a decisão a um terceiro imparcial (juiz), que teria a difícil tarefa de decidir qual melhor alternativa para a questão.

Ainda, o questionamento gerado pelos argumentos aventados na ADPF abriram portas para outras problemáticas que precisam ser solucionadas, pois, além do risco à saúde da população, haveria a responsabilização de optometristas do mesmo modo que há para oftalmologistas?

O STF, ponderando sobre os argumentos lançados pelos respectivos conselhos, manifestou-se de duas formas diferentes. Em sua primeira decisão, manteve as proibições já estipuladas pelos decretos aos optometristas (com formação superior), cabendo a eles somente as atividades não médicas, portanto, as que se referem ao auxílio, aconselhamento e à execução sobre lentes, estando proibido diagnóstico e prognóstico, uma vez cabíveis somente ao médico. Já em sua segunda decisão, permitiu a exceção de que optometristas com curso superior teriam certa liberdade de atuação.

Na primeira decisão, o ministro relator ponderou que:

Na espécie, a restrição da liberdade de profissão foi realizada por instrumento normativo constitucional à época de sua edição e pauta-se pela qualidade profissional de atividade com potencial lesivo, qual seja, a prescrição de lentes óticas, cujo emprego sem a correta tecnicidade podem agravar doenças e condições oftalmológicas ou aviltar qualquer diagnóstico preventivo ou repressivo inicial.

(Vide ADPF 131)

As proibições conferidas aos optometristas por tais normas podem ser sintetizadas em: a) instalação de consultórios isoladamente (art. 38 do Decreto 20.931/32); b) confecção e venda de lentes de grau sem prescrição médica (art. 39 do Decreto 20.931/32); c) escolha, permissão de escolha, indicação ou aconselhamento sobre o uso de lentes de grau (art. 13 do Decreto 24.492/34); e d) fornecimento de lentes de grau sem apresentação da fórmula de ótica de médico sem diploma registrado (art. 14 do Decreto 24.492/34).

A formação dos óticos e optometristas no Brasil se divide em: práticos (sem qualquer formação), técnicos (curso de nível médio), tecnólogos (curso superior tecnológico) e bacharéis (curso superior de bacharelado). E, de acordo com a primeira decisão, as restrições impostas pelos Decretos não são desproporcionais nem inconstitucional, diante do fato de estar assentada em risco de dano coletivo à saúde.

O STF entendeu em favor do CFM sob o argumento de que a busca pelo profissional médico é pautada na existência de indício em um vício de saúde, sendo que, para a oftalmologia, significativa parcela dos pacientes que buscam os consultórios e atendimentos oftalmológicos o fazem movidos por queixas relacionadas a incômodos provocados por um vício de refração (ametropias) sendo, portanto, porta de entrada fundamental para a identificação de moléstias oculares mais graves, de alto potencial incapacitante ou cegante, condições que somente podem ser diagnosticadas e avaliadas por profissionais com capacitação técnica em oftalmologia, que somente médicos podem acessar.

Destarte, a primeira decisão da ADPF entendeu que é impossível refutar o argumento que a maioria das moléstias podem ser descobertas com simples realização de exame técnico-operacional pelo profissional capacitado para tal análise, o que seriam olvidados caso se libere para os optometristas realizarem tal atividade indiscriminadamente (independentemente de possuírem formação profissional adequada), de sorte que não se pode segregar o diagnóstico de ametropias das doenças oculares correlatas. Ou seja, caso fosse liberada a realização do diagnóstico pelos optometristas, o risco coletivo à saúde seria constatado pelo fato de que os pacientes deixariam de realizar exames mais complexos e técnicos com oftalmologistas em decorrência do diagnóstico feito por profissional menos técnico:

O único modo de harmonizarem-se os interesses em jogo, na atual senda, é mediante a ponderação da norma protetiva à saúde frente à liberdade profissional, em atenção ao postulado do in dubio pro salute.

(Vide ADPF 131)

A ADPF precisou colocar dois princípios frente a frente (liberdade profissional e saúde coletiva), tendo STF entendido que, apesar de a proposta dos optometristas parecer equitativa, de modo a autorizar tão somente a atuação de profissionais graduados em Instituição de Ensino Superior (IES), referida percepção não afasta a conclusão de que a liberação indiscriminada iria de encontro à proteção constitucional da saúde.

Por outro lado, exatamente por se tratar de uma propostas “equitativa”, de que somente os optometristas com curso superior poderiam atuar sem proibição, a ADPF não fechou as portas para uma eventual mudança legislativa que afaste futura regulamentação profissional aos optometristas e que permita modificação do entendimento:

Diante desse cenário, em razão da alteração paulatina – pelo menos desde o surgimento dos primeiros profissionais com formação tecnológica ou bacharelar, das qualificações técnicas que permitam outros profissionais a realizar prescrição de órteses e próteses oftalmológicas –, penso que não cabe ao Poder Judiciário, mas ao Poder Legislativo reconhecer essa qualificação profissional por meio do instrumento adequado.

(Vide ADPF 131)

Portanto, cabe ao Poder Legislativo o ônus da alteração legal que se adeque ao entendimento aventado pelo CBOO, em outras palavras, a decisão da ADPF entende que a evolução tecnológica e técnica conectada à evolução diagnóstica pelos profissionais optometristas possibilita uma modificação no entendimento de que estes profissionais, eventualmente, possam vir a realizar diagnósticos, sem serem médicos, desde que o Poder Legislativo Federal (Câmara dos Deputados e Senado Federal) promulguem novas leis que permitam essa atividade.

Em um resumo pragmático, a primeira decisão da ADPF entendeu, neste momento, ser mais pertinente se unir ao argumento lançado pelo CFM relacionado à cautela com a saúde coletiva, pois, nos processos, ficou demonstrada a inexistência de uma lei atual ou comprovação científica que, sem sombra de dúvidas, possibilite que profissionais do CBOO firmem diagnósticos e que isto não afetaria a saúde dos pacientes que, em vez de consultarem oftalmologistas, realizariam consultar com optometristas. No entanto, dada a natureza mutável do direito e da ciência, caso, eventualmente, haja comprovação da pertinência legislativa, ou seja, provada a necessidade de promulgação de uma nova lei, caberá ao próprio CBOO a atitude ativa de buscar junto aos representantes legislativos a criação de norma atualizada, bem como ao CFM e ao próprio Conselho Brasileiro De Oftalmologia – CBO argumentar de forma contrária à essa nova lei.

Acontece que, a contradição da primeira decisão e o fato de que o legislador já tinha afastado da Lei 12.842/2013 (Lei do Ato Médico) a exclusividade ao médico para prescrição de órteses e próteses oftalmológicas, gerou uma necessidade de que o STF, em uma segunda decisão, reconhecesse que o Poder Legislativo havia retirado da Lei do Ato Médico tal exclusividade:

A bem da verdade, e nisto reconheço a contradição parcial da proposição lançada ao final, o exercício profissional dos optometristas, de fato, já experimentou recentemente o crivo do processo legislativo. Penso ser igualmente verdadeira a constatação que esse crivo se deu de forma negativa, parcial e insuficiente.

Negativa porque, embora não tenha sido expressamente concedido aos optometristas o direito à “prescrição de órteses e próteses oftalmológicas”, igualmente não foi deferida aos médicos o monopólio de tais prescrições. Parcial e insuficiente porque a disciplina de uma profissão decerto não pode se resumir à possibilidade de prescrição, tampouco deve merecer apenas uma pontual e indireta menção em razões de veto a dispositivo de lei (Lei 12.842/2013).

(Vide ADPF 131)

Isto posto, a segunda decisão terminou de vez a discussão dando permissão aos optometristas, com curso superior, para a instalação de consultórios isoladamente, confecção e venda de lentes de grau sem prescrição médica, permissão de escolha, indicação ou aconselhamento sobre o uso de lentes de grau e o fornecimento de lentes de grau sem apresentação da fórmula de ótica de médico.

Autor: Flávio Dias de Abreu Filho. Graduado pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB); especialista em Direito Penal e Processo Penal pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa  (IDP) em Brasília/DF; mestrando em direito pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa  (IDP) em Brasília/DF, diretor jurídico da Associação de Empresas de Engenharia e Limpeza Urbana do Brasil – ALUBRÁS, advogado sócio do escritório Abreu&Abreu advogados. diasdeabreu@abreueabreu.com


[1] Art. 38 É terminantemente proibido aos enfermeiros, massagistas, optometristas e ortopedistas a instalação de consultórios para atender clientes, devendo o material aí encontrado ser apreendido e remetido para o depósito público, onde será vendido judicialmente a requerimento da Procuradoria dos leitos da Saude Pública e a quem a autoridade competente oficiará nesse sentido. O produto do leilão judicial será recolhido ao Tesouro, pelo mesmo processo que as multas sanitárias.      (Vide ADPF 131)

[2] Art. 39 É vedado às casas de ótica confeccionar e vender lentes de grau sem prescrição médica, bem como instalar consultórios médicos nas dependências dos seus estabelecimentos.      (Vide ADPF 131)

[3] Art. 41 As casas de ótica, ortopedia e os estabelecimentos eletro, rádio e fisioterápicos de qualquer natureza devem possuir um livro devidamente rubricado pela autoridade sanitária competente, destinado ao registo das prescrições médicas.      (Vide ADPF 131)

[4] Art. 13 E’ expressamente proibido ao proprietário, sócio gerente, ótico prático e demais empregados do estabelecimento, escolher ou permitir escolher, indicar ou aconselhar o uso de lentes de gráu, sob pena de processo por exercício ilegal da medicina, além das outras penalidades previstas em lei. (Vide ADPF 131)

[5] Art. 14 O estabelecimento de venda de lentes de gráu só poderá fornecer lentes de gráu mediante apresentação da fórmula ótica de médico, cujo diploma se ache devidamente registrado na repartição competente.    (Vide ADPF 131)

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