O inédito transplante triplo em lutador em plena pandemia

Segundo levantamento internacional, queda no número de cirurgias chegou a 29%, quase o dobro da média mundial. Para o Ministério da Saúde, redução não passou de 19,7%

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No dia 4 de abril de 2021, o lutador mineiro José Honório da Silva Filho, de 56 anos, travou a disputa mais difícil de sua carreira. Em pleno domingo de Páscoa, o faixa-preta de jiu-jítsu não competiu por nenhum título, troféu ou medalha. O que estava em jogo, não em um tatame, mas em um hospital, era sua própria vida.

Campeão de caratê, muay thai e luta livre, entre outras modalidades de artes marciais, José Honório foi submetido a um transplante triplo. Em uma mesma cirurgia, os médicos trocaram o coração, o fígado e os rins do paciente.

O procedimento, inédito na América Latina, aconteceu no Hospital São Lucas, em Copacabana, Zona Sul do Rio de Janeiro.

“Uma luta só acaba quando soa o gongo ou o juiz determina”, afirma José Honório. “Sempre gostei de lutar até o fim.”

O transplante triplo de José Honório durou nove horas. Parece muito, mas a previsão inicial era 15. Para não ter imprevistos durante a luta, ou melhor, intercorrências durante a cirurgia, os médicos “treinaram” antes.

Sob a orientação de especialistas da Universidade de Miami, que já realizaram cinco cirurgias deste tipo, os brasileiros fizeram uma série de simulações.

“São muitas as dificuldades de um transplante triplo”, avalia o cirurgião abdominal Eduardo Fernandes. “Encontrar um doador compatível é apenas uma delas.”

Se o paciente precisa trocar, simultaneamente, três órgãos, explica o médico, é porque o seu estado de saúde é muito grave. E o de José Honório, que sofria de insuficiência cardíaca, cirrose hepática e disfunção renal, inspirava muitos cuidados.

Entre a internação do paciente e o tão esperado transplante, se passaram 30 dias. O coração, o fígado e os rins de José Honório vieram de um mesmo doador: um rapaz de 18 anos que morreu em um hospital da Baixada Fluminense, a 60 quilômetros do São Lucas, em Copacabana.

Vinte batedores da Polícia Militar escoltaram a equipe médica do Programa Estadual de Transplantes, responsável pela captação dos órgãos.

Em 30 minutos, a caixa térmica chegou ao hospital. Um rim pode esperar até 24 horas para ser transplantado, mas, no caso do coração e do fígado, o tempo de isquemia, ou seja, que um órgão dura depois de ser retirado do corpo do doador, é de, no máximo, 4 e 8 horas, respectivamente.

“É uma corrida contra o tempo”, define o médico que, no centro cirúrgico coordenou uma equipe de 20 profissionais, entre cirurgiões, anestesistas e nefrologistas. Com 1,5 mil transplantes no currículo, o cirurgião Eduardo Fernandes nunca tinha realizado um transplante triplo antes.

O transplante triplo pode ser dividido em duas partes. Na primeira delas, os médicos implantam, simultaneamente, o coração e o fígado do paciente. Enquanto três cirurgiões cuidam do coração, quatro substituem o fígado.

A técnica, explica o médico, reduz as chances de rejeição dos órgãos. Assim que o coração e o fígado voltam a trabalhar, os médicos dão início à segunda etapa: trocar os rins.

“Há quatro meses, José Honório estava entre a vida e a morte. Hoje, já voltou a dar aulas”, avisa Fernandes. “É um exemplo vivo da importância da doação de órgãos.”

Além do transplante triplo, o Hospital São Lucas realizou, em março deste ano, um transplante multivisceral. Em uma mesma cirurgia, o receptor ganha estômago, fígado, pâncreas, intestino delgado e intestino grosso novos. Se um transplante triplo dura, em média, 9 horas, o multivisceral pode chegar a 12 horas ininterruptas.

Covid impactou 11.253 transplantes

O número de transplantes no Brasil, segundo levantamento internacional, caiu 29% durante a pandemia. É quase o dobro da média dos 22 países pesquisados: 16%. O país menos afetado foi os EUA, que sofreram redução de 4%, e o mais atingido, o Japão, com queda de 67%.

Canadá e Alemanha estão na parte de cima do ranking, com reduções de 9% e 11%. Já Chile e Argentina na parte de baixo: quedas de 54% e 61%.

“Os EUA estimulam o alto desempenho de suas unidades transplantadoras e chega a descredenciar aquelas que vão mal”, explica o engenheiro Rafael Paim, presidente da Aliança Brasileira pela Doação de Órgãos e Tecidos (ADOTE), que, no dia 4 de abril de 2006, perdeu seu filho, Arthur, com apenas quatro meses e 21 dias de vida, na fila de transplante à espera de um coração.

“O Canadá procura aproveitar mais órgãos de um mesmo doador e a Alemanha incentiva a doação de idosos.”

O estudo, coordenado pela Universidade de Paris e publicado na revista científica Lancet Public Health, incluiu apenas transplantes de rim, fígado, pulmão e coração. O procedimento que mais deixou de ser realizado foi o de rim, com uma redução de 19,14%. Em seguida estão o de pulmão (15,51%), fígado (10,57%) e coração (5,44%). Ao todo, 11.253 transplantes tiveram que ser cancelados no mundo.

No Brasil, o transplante mais impactado pela pandemia foi o de pulmão (56,82%), seguido de coração (37,42%), rim (32,89%) e fígado (16,51%).

Os dados do Brasil no consórcio internacional foram compilados pelo nefrologista Gustavo Fernandes Ferreira, vice-presidente da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO), e consideram o período de final de março, quando foi registrado o 100º caso de covid no país, a dezembro de 2020.

Segundo dados do Ministério da Saúde, o total de transplantes de rim, fígado, pulmão e coração caiu de 9.082, em 2019, para 7.287, em 2020. Uma redução de 19,7%. Considerando outros órgãos, como pâncreas e intestino, e tecidos, como córnea e medula óssea, o impacto foi ainda maior: de 27.694 para 17.663 no mesmo período. Uma queda de 36,2%.

De janeiro a julho deste ano, foram realizados, ainda segundo o ministério, 3.867 transplantes de órgãos e 8.523 de tecidos.

“Um doador pode salvar a vida de até oito pessoas em transplantes de órgãos e de até 50, de tecidos”, afirma Fabrício de Souza Oliveira, diretor técnico do Programa Estadual de Transplantes do Rio de Janeiro.

O estado tem hoje quatro comissões intra-hospitalares dedicadas à captação de órgãos. Em breve, pretende chegar a 20. O Programa Estadual de Transplantes do Rio de Janeiro disponibilizou ainda um helicóptero para o transporte de órgãos e voltou a realizar, depois de 15 anos, transplante de pulmão.

“Até setembro, já realizamos 933 transplantes. Queremos ultrapassar o patamar de 2019, que chegou a 2.400”, avisa Fabrício.

Morte encefálica: permanente e irreversível

Se os EUA são um exemplo a ser seguido entre os países, o Paraná pode ser considerado uma referência no Brasil.

Segundo dados de 2020 da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO), foi o estado com o melhor índice de doações de órgãos por milhão de população: 41,5 pmp. Em segundo lugar está Santa Catarina (39,5 pmp) e, em terceiro, São Paulo (23,8 pmp).

“Apesar do caos provocado pela pandemia, conseguimos manter a liderança tanto em número de doações quanto em total de transplantes”, orgulha-se a médica intensivista Luana Alves Tannous, do Sistema Estadual de Transplantes do Paraná.

“Nosso índice, de 41,5 pmp, está muito acima da média nacional, de 15,8 pmp”. O Paraná é, ainda, o estado com o menor índice de recusa. Em 2020, apenas 23% das famílias disseram “não” à doação de órgãos. A média nacional é de 37%.

Não por acaso, Arlene Badoch, coordenadora do Sistema Estadual de Transplantes do Paraná por 12 anos, foi nomeada, em julho deste ano, coordenadora-geral do Sistema Nacional de Transplantes. Seu maior desafio, avisa, é aprimorar o trabalho de identificação do paciente com morte encefálica. Isto é, quando há perda completa, permanente e irreversível de suas funções cerebrais.

“Apenas 12 mil das 21 mil mortes cerebrais no Brasil são devidamente identificadas. Ou seja, há um déficit de nove mil mortes sem identificação”, explica Badoch. “Muitas vezes, o paciente sofre morte cerebral e sua família, por falta de identificação por parte das equipes responsáveis, não é notificada.”.

Os protocolos de diagnóstico de morte encefálica no Brasil são um dos mais rígidos do mundo e incluem exames clínicos, laboratoriais e de imagem. O procedimento é feito por, no mínimo, dois médicos.

Muito paciente para pouco órgão

Atualmente, 53.218 pacientes aguardam na fila por um transplante de órgãos no Brasil. Desses, 31.125 esperam por um rim, 1.905 por um fígado, 365 por um coração e 259 por um pulmão. Outros 19.115 pacientes aguardam por um transplante de córnea.

“Não basta ser favorável à doação de seus órgãos. É preciso avisar à família. Somente os parentes podem autorizar a doação”, explica o médico José Huygens Parente Garcia, presidente da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO).

“Sou doador de órgãos e a primeira providência que tomei foi comunicar minha família da minha decisão. Só assim, aumentando o número de doadores, vamos conseguir atender aos pacientes na fila e reduzir sua taxa de mortalidade.”

Quanto ao lutador José Honório, três dias depois do transplante, ele já estava pedalando uma bicicleta ergométrica no Centro de Terapia Intensiva (CTI). Em duas semanas, recebeu alta e, em um mês, voltou a pisar em um tatame. Ao ser indagado sobre como está hoje seu paciente, seis meses depois do transplante triplo, o cirurgião Eduardo Fernandes responde: “Melhor que eu”, cai na risada.

“Parece um garoto de 18 anos. Hoje, ele tem a idade dos órgãos que recebeu.” Ano que vem, José Honório planeja participar do campeonato mundial de jiu-jítsu em Las Vegas, nos EUA. Professor há 30 anos, continua dando aula para alunos dos 12 aos 64 anos. Já formou mais de 60 faixas-pretas, incluindo os dois filhos.

“Toda vez que eu entrar no tatame, seja para competir, seja para dar aula, vou lembrar do rapaz que salvou minha vida. Se estou vivo hoje, devo a ele. Sem doação, não há transplante”, ensina.

Fonte: VIVA BEM UOL

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