Nos últimos anos, a ciência tem voltado seu olhar para uma conexão antes pouco explorada: a relação entre o intestino e o cérebro. Essa ligação, conhecida como eixo intestino-cérebro, tem ganhado força especialmente no estudo de condições neurológicas como o Transtorno do Espectro Autista (TEA). Um novo estudo publicado na revista Nature Communications aprofunda essa conexão, revelando indícios concretos de que desequilíbrios no microbioma intestinal podem estar ligados a alterações cerebrais e comportamentais observadas em crianças com autismo.
A pesquisa, conduzida por uma equipe da Universidade do Sul da Califórnia, analisou 84 crianças com idades entre 8 e 17 anos — 43 com diagnóstico de autismo e 41 neurotípicas (sem diagnóstico). Os pesquisadores coletaram uma série de dados, incluindo exames cerebrais, registros comportamentais detalhados e amostras de fezes. A análise revelou diferenças importantes nos níveis de certos metabólitos, principalmente aqueles derivados do triptofano, um aminoácido essencial encontrado em diversos alimentos e conhecido por seu papel na regulação do humor e da cognição.
Um dos achados mais significativos foi a redução dos níveis de quinurenato nas crianças com autismo. Esse composto, produzido a partir do triptofano, tem propriedades neuroprotetoras e desempenha papel importante no controle da inflamação e na regulação das vias neurológicas. Os níveis mais baixos de quinurenato observados nas crianças com TEA estavam diretamente associados a alterações na atividade cerebral em regiões ligadas à resposta emocional e sensorial.
Essas descobertas reforçam a hipótese de que o microbioma intestinal — o conjunto de trilhões de microrganismos que vivem no intestino — pode influenciar significativamente o funcionamento cerebral. A relação é bidirecional: o cérebro afeta o intestino e vice-versa. Quando há desequilíbrios na microbiota intestinal, substâncias produzidas por bactérias podem impactar os processos neurológicos, modulando comportamentos e sensações.
O estudo também mostrou que crianças com TEA apresentavam perfis distintos de microbioma em comparação com as neurotípicas. A diversidade e composição das bactérias intestinais estavam alteradas, com presença reduzida de espécies consideradas benéficas e aumento de outras associadas à inflamação. Isso pode afetar diretamente a forma como o triptofano é metabolizado no corpo, prejudicando a produção de substâncias como a serotonina e o próprio quinurenato.
Para os pesquisadores, esses resultados sugerem que o intestino pode ser um ponto de intervenção terapêutica importante. Se for possível restaurar o equilíbrio da microbiota intestinal — por meio de mudanças na alimentação, uso de probióticos ou outras estratégias —, é possível que também haja uma melhora nos sintomas do autismo. No entanto, os próprios autores do estudo alertam que mais pesquisas são necessárias antes de qualquer aplicação clínica generalizada. Estudos com amostras maiores e que acompanhem os participantes por mais tempo serão fundamentais para confirmar esses achados.
A novidade deste estudo é que ele não se limita apenas à análise do microbioma, mas relaciona diretamente os dados comportamentais, bioquímicos e cerebrais. Essa abordagem multidisciplinar permite uma visão mais abrangente de como os sistemas do corpo humano estão interligados, especialmente em condições complexas como o autismo.
Especialistas como a Dra. Geraldine Dawson, da Universidade Duke, apontam que a pesquisa representa um avanço significativo, mas reforçam que é preciso cautela. Ela destaca que ainda estamos nos primeiros passos para entender como essas interações entre microbioma e cérebro acontecem, e que os tratamentos devem sempre ser conduzidos com base em evidências robustas.
Ainda assim, a expectativa é grande. Se o eixo intestino-cérebro de fato influencia o desenvolvimento neurológico, isso abre uma nova fronteira para a medicina preventiva e para a construção de estratégias mais personalizadas no cuidado ao autismo. O estudo também colabora para reduzir o estigma ao mostrar que o comportamento autista pode ser parcialmente modulado por fatores biológicos e ambientais, e não é apenas uma questão genética ou comportamental isolada.
Em resumo, este estudo reforça a necessidade de uma abordagem holística quando se trata da saúde infantil e do desenvolvimento neurológico. O corpo humano funciona como um sistema interconectado, e entender essas ligações pode ser a chave para avanços significativos na qualidade de vida de milhões de pessoas.
Fontes:
Nature Communications, Universidade do Sul da Califórnia, Verywell Health, National Institutes of Health (NIH), PubMed Central