Judicialização de planos de saúde: uma introdução ao tema

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Close up of oximeter on patient in hospital ward bed at medical facility. Old man waiting on results for treatment against health diagnosis. Doctor checking IV drip bag with serum

A judicialização dos planos de saúde é questão corriqueira nos tribunais de justiça. Por isso, é seguro dizer que temos um inventário de incontáveis materiais relacionados a decisões judiciais sobre obrigações e deveres dos planos de saúde, sendo a mais comentada dos últimos tempos relacionada ao polémico “rol taxativo da ANS”, que merece uma coluna própria.

Mas, antes de falarmos de um dos assuntos mais complexos, é preciso iniciar o estudo sobre plano de saúde definindo, primeiro, o que seria, na visão jurídica, cada expressão relacionada ao tema e como elas se relacionam, bem como entender o que são, na essência, os serviços prestados pelas operadoras de saúde e como elas se comunicam com o dever do Estado de fornecer saúde universal a todos.

Com isso em mente, a Lei Federal que dispõe sobre os planos e seguros privados de assistência à saúde é a Lei 9.656/98, que foi alterada, por diversas vezes, ao longo dos anos, especialmente pela Medida Provisória n° 2.177-44/01 que passou a definir Plano Privado de Assistência à Saúde como “prestação continuada de serviços ou cobertura de custos assistenciais a preço pré ou pós estabelecido, por prazo indeterminado, com a finalidade de garantir, sem limite financeiro, a assistência à saúde, pela faculdade de acesso e atendimento por profissionais ou serviços de saúde, livremente escolhidos, integrantes ou não de rede credenciada, contratada ou referenciada, visando a assistência médica, hospitalar e odontológica, a ser paga integral ou parcialmente às expensas da operadora contratada, mediante reembolso ou pagamento direto ao prestador, por conta e ordem do consumidor” (art. 1°, inciso I, da Lei 9.656/98).

Já as Operadora de Plano de Assistência à Saúde foram qualificadas como “pessoa jurídica constituída sob a modalidade de sociedade civil ou comercial, cooperativa, ou entidade de autogestão, que opere produto, serviço ou contrato” de plano de saúde (art. 1°, inciso II, da Lei 9.656/98).

De início, devemos sanar uma confusão muito comum dos consumidores. Plano de saúde é um produto oferecido por operadoras, no caso, empresas, que são autorizadas a realizarem a sua comercialização. O que, na prática, significa que quando o consumidor litiga “contra o plano de saúde”, na verdade ela está entrando em uma disputa judicial contra a operadora daquele plano, e o objeto que vai ser discutido naquele processo são os serviços de assistência à saúde que o produto deveria oferecer, tratando-se de uma discussão contratual relacionada às condições oferecidas pela operadora no exercício da assistência à saúde privada.

Tendo essa perspectiva, no Brasil existem as chamadas agências reguladoras que são, efetivamente, autarquias de regime especial destinadas a regulamentar, controlar e fiscalizar a execução de serviços públicos transferidos para o setor privado.

Saúde é um direito de qualquer cidadão e um dever do Estado, mas que, por conta de uma noção de livre iniciativa, prevista em nossa Constituição Federal especificamente em seu art. 170, a competência de fornecimento de saúde universal que seria do Ente Público pôde ser transferida ao setor privado, mas que não deixou de ser fiscalizada e regulamentado pelo Poder Público.

Com isso em mente, para a regulação dos planos e as operadoras foi criada a Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS pela Lei 9.961/00, que fiscaliza qualquer modalidade de produto, serviço e contrato que apresente, além da garantia de cobertura financeira de riscos de assistência médica, hospitalar e odontológica, outras características que o diferencie de atividade exclusivamente financeira, como, por exemplo, custeio de despesa, oferecimento de rede credenciada ou referenciada, reembolso de despesas, mecanismos de regulação e qualquer restrição contratual, técnica ou operacional para a cobertura de procedimentos solicitados pelo consumidor.

Uma das mais importantes funções da ANS, que tem relação direta com o chamado rol taxativo, é o fato de que essa agência reguladora é responsável pela vinculação de cobertura financeira à aplicação de conceitos ou critérios médico-assistenciais (art. 1°, § 1°, alínea ‘f’, da Lei 9.656/98); ou seja, os planos de saúde, por vezes, se apegam às previsões expressas da agência para a recusa de cobertura para alguns tipos de tratamento, sob a alegação de que, se não está no rol da ANS, o plano não é obrigado a pagar.

E é nessa discordância quanto ao dever de cobertura de tratamento que consumidor e operadora passam a alçar a discussão ao Poder Judiciário.

Um caso que vem se multiplicando é o relacionado à negativa das operadoras de planos de saúde em conceder autorização em tratamentos complementares aos beneficiários de transtorno de espectro autista.

Por ser a saúde um direito garantido constitucionalmente, ao legalizar a transferência do dever do Estado para a iniciativa privada, a Constituição determina às operadoras que cumpram essa responsabilidade. Por isso, recentemente o Tribunal de Justiça de São Paulo, ao analisar o pedido de um beneficiário portador do transtorno de espectro autista condenou a operadora a pagar todos os tratamentos com Fonoaudiologia, Psicoterapia comportamental, Terapia Ocupacional com integração sensorial, Musicoterapia e Fisioterapia Motora.

A intepretação dada pela decisão ao problema é a de que a relação contratual entre beneficiário e operadora se rege pelo que a sentença chama de “mandado de otimização”, sendo certo que a “função social” do contrato é um fator limitativo da liberdade de contratar, bem como da impossibilidade de negar o tratamento humano, garantindo a saúde, a vida e a dignidade.

Conforme ficou vergastado na sentença, a resistência imposta pela operadora de que não havia previsão contratual para cobertura destes tratamentos não se sustentava, ante o dever estipulado ao plano de garantir o acesso universal à saúde, em substituição ao Estado.

Veja, por mais que o contrato comercializado pela operadora estivesse devidamente autorizado e regulamentado pela ANS, sendo um produto específico, com cláusulas delimitadas do que poderia ou não ser autorizado, com respaldo de comercialização dado pela própria agência reguladora, não fica afastado o dever de garantir o melhor tratamento ao beneficiário.

Façamos uma pequena digressão com fins de conduzir o leitor a um pensamento crítico, através de uma série de perguntas e respostas: i) sendo um direito básico, constitucional e de dever do Estado, não seria mais vantajoso e barato o cidadão buscar esse tratamento com a rede pública de saúde? Sabemos que a rede pública tem seus problemas, falta de profissionais, falta de estrutura, falta de remédios, quanto ao dever de cobertura de tratamento, excesso de pacientes, dentre todas as outras complicações, o que torna a opção com plano de saúde uma boa ideia; ii) se, então, o Estado possibilitou a terceirização do fornecimento de saúde, e eu quero um atendimento privado, com regalias e garantias de que teria acesso imediato e quando precisar a esses serviços, não me importando em pagar uma contraprestação, eu poderia? Sim; iii) Agora, se o plano de saúde se recusa a custear meu tratamento, específico para a minha condição de saúde e sendo o Estado obrigado a me fornecer esses serviços, eu poderia entrar com uma ação contra o Poder Público e compeli-lo, judicialmente, a prestar a assistência? Sim; iv) se o Estado vai ser responsável pelo meu tratamento, por que existe, então, operadoras que comercializam planos de saúde e qual a razão de eu estar pagando a mensalidade de um plano de saúde que pode me recusar o tratamento? Essa eu deixo ao leitor.

Uma vez que se entende a lógica, parece ser simples compreender que as operadoras que aceitam adentrar nesse mercado assumem o risco do negócio, não podendo exigir somente o bônus, ou seja, a mensalidade, mas deve arcar com o ônus da privatização da saúde, caso contrário, a própria existência do plano de saúde seria questionável.

Aqui cabe a ressalva de que não somos contrários à prestação dos serviços de saúde pelas operadoras, muito menos inviabilizar essa transferência de responsabilidade do Estado para o setor privado, até porque cabe ao consumidor, que tenha condição de escolha, optar pelo que melhor lhe aprouver, bem como sabemos e entendemos que, caso não existisse planos de saúde, haveria um colapso na rede pública.

Mas, para o direito, essa transferência de responsabilidade acaba por colocar um dever constitucional às operadoras de que elas têm de realizar o tratamento necessário à condição de saúde do beneficiário.

Por se tratar de uma decisão de primeiro grau, tomada por apenas um julgador, sem debate colegiado, não há que se falar em força vinculativa aos próximos casos, ou seja, não necessariamente os próximos processos terão o mesmo resultado; mas é um passo significativo para quem, de um lado, pretende ver garantido o acesso integral ao direito à saúde, sem restrições, sob justificativa de um contrato e, de outro, enxerga como um possível prejuízo às operadoras que, passando a ser obrigadas a realizar tratamentos fora do que estava previsto no contrato, calharão a refletir esses custos nos preços dos planos de saúde, encarecendo o serviço.

De qualquer forma, a discussão, com absoluta certeza, eventualmente será levada aos tribunais superiores para que tenhamos uma decisão vinculativa sobre a matéria, pois é a assim que o direito funciona, a evolução do entendimento jurídico passa, necessariamente, pela discussão judicial.


Autores: Daniele Queiroz de Souza. Graduada em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP); Pós-graduada em Direito Médico, Odontológico e da Saúde pela USP – Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto; Pós-graduada em Ordem Jurídica e Ministério Público pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (FESMPDFT); Membro Efetivo Observatório Nacional de Direito Médico e da Saúde; Secretária-Geral (2023) da Comissão de Gestão, Empreendedorismo e Inovação Jurídica OAB/DF – Subseção Taguatinga; Membro da Comissão de Direito Médico da OAB/DF; Advogada. danieleqsadv@gmail.com

Flávio Dias de Abreu Filho. Graduado pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB); especialista em Direito Penal e Processo Penal pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) em Brasília/DF; mestrando em direito pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) em Brasília/DF, diretor jurídico da Associação de Empresas de Engenharia e Limpeza Urbana do Brasil – ALUBRÁS, advogado sócio do escritório Abreu&Abreu advogados. diasdeabreu@abreueabreu.com

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