06:32, meu despertador canino, um cachorrinho labrador de 42 kg, me alerta que devo acordar. Latidos insistentes, bitonais e que lembram choro, determina que está na hora de eu ser levado para o seu passeio matinal. Insiste, e me faz saber que estou envelhecendo, perdendo músculos, e que a sarcopenia costuma avançar com a idade. Conto os passos diários que sou obrigado a percorrer mas que poderão me garantir uma maior sobrevivência com melhor qualidade de vida. Devo vencer a preguiça e o sedentarismo.
Esta rotina faz com que recordações da minha formação médica venham à tona. No século passado o ensino médico era compartimentado em disciplinas com frequentes experimentos com animais. Na disciplina de Cirurgia Experimental da Universidade Federal do Paraná, as cirurgias em cachorros eram o ápice. Palestras sobre medicina espacial e outras de cunho inusitado para a época, faziam com que alunos extasiados e temerosos permanecessem inertes em seus assentos.
Todos, no entanto estavam cientes das agruras por que passariam. Caçadas noturnas de cachorrinhos, divisão de alimentação com os futuros pacientes cirúrgicos, a obrigatoriedade do preparo adequado do cachorrinho paciente, a constituição da equipe cirúrgica, momento este que exigia simpatia e convencimento de colegas de turma para participar do meu evento cirúrgico.
As tarefas eram hercúleas e os cachorrinhos pacientes iniciavam seu pós operatório no bar ao lado da escola e continuavam na moradia república. Sob protestos dos moradores. Após esta odisseia os cachorrinhos sobreviventes eram apresentados bem cuidados, limpos, com curativos adequados e vivos.
Os relatórios do ato cirúrgico eram devidamente preenchidos e eram avaliados pelos monitores da disciplina – repetentes – que eram em um número elevado e professores da disciplina. A repetência era uma garantia para vários colegas e a segunda época uma normalidade para a maioria. Com esta disciplina baseada nos amigos cachorrinhos houve a formação de uma grande plêiade de competentes cirurgiões.
Os estudos experimentais em cães e animais de grande porte sempre foram a regra em estudos de cirurgias, como as cardíacas e os transplantes. Estes abriam o caminho para os estudos clínicos em humanos, e após comprovações científicas eram incorporados na pratica médica. Assim, existem histórias de pesquisadores que transformaram o seu domicilio em um biotério canino pessoal.
Uma delas foi a que propiciou a descoberta do efeito deletério das células do sangue de um cachorrinho doador de medula óssea para outro da mesma raça. Isto esclareceu a doença do enxerto contra o hospedeiro e, como nos humanos confirmou a existência de grupos sanguíneos dos glóbulos brancos. O estudo quase foi abortado por problema familiar em decorrência do número de cachorrinhos envolvidos no experimento que foi composto de 25 cachorrinhos da raça beagle.
Ainda hoje a utilização de animais na pesquisa científica permanece, porém a legislação é rígida e as restrições impostas ao uso de animais em pesquisas passam por obrigações que são avaliadas pelos Conselhos e Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP).
Assim, o meu cachorrinho implora que com os avanços tecnológicos, as pesquisas com animais sejam restritas e de preferência suspensas em definitivo.
Milton Artur Ruiz
Coordenador da Unidade de TMO e Terapia Celular Hospital Infante D. Henrique da Associação Portuguesa de Beneficência de São José do Rio Preto, SP.
Livre Docente de Hematologia FAMERP, SP.
Ex-Professor de Hematologia FM USP, SP.