Todos sabemos que ser empresário no Brasil importa em diversas dificuldades para além da incessante burocracia atrelada às atividades empresariais. Somente se levarmos em conta a questão tributária, teríamos uma lista imensa de normas, regulamentações, decisões e outras questões vinculativas ao correto recolhimento de tributos.
Para dar uma noção ao leitor do que estamos falando, no ano de 2014 a Frente Parlamentar da Desburocratização lançou o livro “Burocracia no Brasil – Pátria Amada“, de autoria de Vinícios Leôncio, que compilou quase todas as leis e normas tributárias dos 5.561 municípios brasileiros, dos 26 estados, do Distrito Federal e do governo federal; o livro tinha 7,55 toneladas, 41 mil páginas, com – cada uma – medindo 2,10 metros de comprimento por 1,40 metro de largura, contendo as normas tributárias editadas entre 1988 e 2011[1].
Cada norma, seja ela tributária, previdenciária, trabalhista, cível, criminal, dentre tantas outras categorias, representa uma possibilidade infinita de eventuais contendas judiciais que o empresário eventualmente, e infelizmente, será obrigado a enfrentar. Nenhum planejamento é isento de críticas de terceiros que, casualmente, podem intentar cruzadas contra o negócio visando ganho pessoal. É por isso que a primeira noção que qualquer pessoa que deseja ter o próprio negócio tem de ter quando ingressa no mundo empresarial é a de que a litigância vai ser uma realidade e que, por isso, precisa ter a consciência para prevenir ou diminuir os riscos do impacto que a contenda lhe trará. Isso faz parte do chamado risco do negócio jurídico.
No caso da saúde, esse risco é melhor traduzido quando observamos os casos das chamadas “infecções hospitalares”, tecnicamente denominados de IRAS (Infecção relacionada à Assistência à Saúde), que são de responsabilidade objetiva, ou seja, o fornecedor de serviço responde sem aferição de culpa: o paciente que for diagnosticado com essa condição, para receber uma indenização da clínica ou do hospital, basta provar que contraiu o patógeno quando estava internado no estabelecimento de saúde, sem ter que provar que o hospital ou que os agentes de saúde do local agiram com imprudência, imperícia ou negligência (categorias que para o direito representam a “culpa”), devendo comprovar, no entanto, o dano.
Fazendo uma breve, mas necessária digressão, a responsabilidade objetiva somente é da pessoa jurídica, ou seja, em relação aos profissionais da saúde, sempre será necessário provar que este não agiu com imprudência, imperícia ou negligência para que se possa ser condenado a indenizar; a isso chamamos de responsabilidade subjetiva.
Dessa forma, há responsabilização o médico em caso de infecção hospitalar?
O médico, em regra, não dá causa à infecção. Trata-se de algo que não se identifica com exatidão como aconteceu, mas sim que ocorreu dentro do hospital relacionado à assistência à saúde (sempre esses pressupostos). Somente se for comprovado, em casos específicos, que a infecção derivou de algum instrumento ou equipamento levado pelo médico, por exemplo, é que se discute responsabilidade do profissional, caso contrário, a regra é que hospital assuma o dano[2].
Assim sendo, para a condenação do estabelecimento, os prejuízos indenizáveis ou ressarcíveis são aqueles que decorrem direta e imediatamente do seu fato gerador (a causa), bastando, portanto, provar o nexo causal (relação) entre o fato e a consequência (dano). Em outras palavras, a causa é o antecedente necessário e adequado à produção do resultado; sem a internação, não haveria infecção, por exemplo.
Isso vem de uma intepretação do art. 14 do Código de Defesa do Consumidor – CDC que prescreve o seguinte:
Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.
Por isso, a maioria dos tribunais nacionais, especialmente o Superior Tribunal de Justiça, possuem remansosas jurisprudências e precedentes (decisões) que, no tocante à responsabilidade do hospital em casos em que o paciente contrai infecção hospitalar, a IRAS, é no sentido de ser objetiva, conforme já explicado, sendo que os danos sofridos resultantes da infecção não precisam de comprovação de erro em saúde; basta haver nexo entre a contaminação e o dano. Se não há dano, consequentemente, não há indenização, sendo inviável defender a tese do dano “presumido”, como ocorre em causas que envolvam fraudes bancárias, o que é bem diferente do que se está discutindo nesse artigo.
Por outro lado, o que ocorre é que, uma vez provado que o dano foi causado pela infecção hospitalar, incide a tese de que ao contrato hospitalar, que traz em si, inevitavelmente, o serviço de internamento, também possui o dever de segurança do paciente, incumbindo ao hospital aplicar os esforços necessários à preservação deste, propiciando-lhe um tratamento médico adequado, apto a viabilizar sua recuperação.
Assim sendo, a eclosão de infecções que acometam o estabelecimento notabilizaria o não cumprimento do referido dever de segurança, evidenciado o defeito no serviço.
Um exemplo prático é o que foi decidido no mês de junho de 2023 pelo Superior Tribunal de Justiça, em processo pelo qual me furto de apresentar sua numeração por se tratar de processo que tramita sob segredo de justiça; nele um infante, por meio de sua genitora, processou um hospital pela inadequada prestação de serviço de cuidado neonatal, que resultou em lesão cerebral e danos permanentes ao recém-nascido em virtude de ter contraído infecção hospitalar. O hospital, por sua vez, tentou afastar a condenação alegando gravidez tardia da genitora, parto prematuro, colo do útero curto e condições físicas do menor ao nascer, quais sejam, prematuridade extrema e baixo peso, sendo fatores que contribuíram para que o menor tivesse contraído a infecção.
Acontece que, no caso, essas circunstâncias alegadas pelo hospital como contribuintes para a infecção, na verdade, se amoldam à teoria do “risco do negócio”, uma vez que, ao tratar pessoas enfermas, é esperado que esse tipo de paciente seja atendido naquele local, consubstanciando em riscos intrínsecos à própria atividade desenvolvida pela casa de saúde.
Veja, para o direito importa saber que, se teve infecção hospitalar, esta faz parte do risco do estabelecimento na prestação de seu serviço; e se faz parte, e houve um dano, o hospital responde objetivamente, devendo indenizar o paciente.
Quais as saídas que o hospital possui nesse caso? Primeira possibilidade, provar que a infecção não foi contraída no estabelecimento , como, por exemplo, de que se trata infecção preexistente, que tem relação com o acidente traumático sofrido, de modo eliminar a responsabilidade do hospital. Assim, sempre que se for falar de infecção hospitalar, entenda ser a infecção relacionada à assistência à saúde; caso contrário, há ausência de nexo de causalidade, não tendo sido a infecção hospitalar responsável pelo dano, mas sim consequências do próprio trauma.
Segunda possibilidade, o hospital deve demonstrar ser impossível a garantia de risco zero de infecção. Isto porque a legislação define “defeitos relativos à prestação dos serviços” como aquele que não fornece segurança ao consumidor em decorrência de “riscos que razoavelmente dele se esperam”, e não de riscos impossíveis de serem evitados. Nota-se, portanto, haver uma breve lacuna para discussão acerca do risco integral ou do risco razoavelmente esperado.
Nesse sentido, no Tribunal de Justiça de São Paulo – TJSP é possível encontrar decisões que constatam inexistir “prova da atuação ostensiva para o adequado e eficiente controle de microrganismos”[3]. Assim podemos discutir se: agindo o estabelecimento com afinco para tentar reduzir os riscos de contaminação por patógenos hospitalares, seria possível afastar a responsabilidade do hospital? Ou na hipótese de a instituição comprovar a existência de Comissão de Controle de Infecção Hospitalar atuante, haveria abrandamento ou exclusão da indenização? Nesses casos a discussão seria não sobre a ausência de culpa, mas sim sobre a ausência de defeito na responsabilidade civil objetiva, afinal o hospital agiu dentro da conformidade esperada para reduzir o dano.
Pela decisão do TJSP, essa discussão foi a responsável por afastar a responsabilidade do estabelecimento pois, além de não ter se provado que a bactéria causadora de infecção decorreu do ambiente hospitalar, não existiu a “mínima demonstração de defeito no serviço médico que impusesse risco além daquele ordinariamente esperado pelo atendimento hospitalar”.[4]
Defende-se, portanto, que o que se pode exigir do hospital é o respeito aos padrões de controle de infecção hospitalar segundo níveis internacionais e nacionais. Entretanto, jamais será exigível que o nível seja zerado.
Terceira possibilidade, é do estabelecimento o ônus de provar a inexistência de defeito do serviço e o fato exclusivo da vítima ou de terceiro, conforme o § 3º do art. 14 do CDC:
§ 3° O fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar:
I – que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste;
II – a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.
No caso do STJ, foi o que estabelecimento tentou fazer ao arguir a gestação da mãe e as condições do parto, mas acabaram não sendo suficientes para afastar a responsabilidade e, nos termos da decisão, não funcionaram nem como concausas, ou seja, não ajudaram a reduzir a responsabilidade do hospital.
Qual o maior problema dessa decisão? Por se tratar de um Acórdão do Superior Tribunal de Justiça, ele detém uma força precedente, apesar de não ser vinculante (obrigatório), os tribunais nacionais não podem deixar de observar o que lá foi decidido, sendo que em casos similares os resultados podem se repetir em desfavor dos estabelecimentos, caso o hospital não consiga demonstrar aquelas exceções que comentamos, como a do TJSP.
Disso surge, também, uma crítica contundente a essa cultura judicializante de nosso país onde tudo se resolve na justiça. A falta de um costume negocial afeta sobremaneira a capacidade empresarial, especialmente quando não se leva em conta as possíveis condenações e os prejuízos que isso trará ao empresário.
No caso do STJ, a condenação judicial foi extremamente elevada, veja: i) danos materiais no valor de R$ 60.876,44 – que ainda vão ser atualizados até a data do pagamento, além de juros de 1% ao mês, desde a data da ciência do hospital sobre a existência do processo; ii) custear todos os medicamentos, consultas e materiais de estimulação, bem como os tratamentos e terapias, inclusive futuros, complementares e multidisciplinares que se fizerem necessários para o prolongamento e melhora da qualidade de vida do paciente durante toda a vida; iii) pensionamento, em favor da criança, no valor de 4 (quatro) salários-mínimos, a partir da data em que completar 14 anos, pelo resto da vida; iv) R$ 100.000,00 (cem mil reais) para o paciente, a título de indenização pelos danos estéticos; e v) R$ 180.000,00 (cento e oitenta mil reais) e R$ 90.000,00 (noventa mil reais), para a paciente e a genitora, respectivamente, a título de danos morais.
Perceba que naquilo que podemos calcular (com certeza) a condenação já está em R$ 430.876,44 (sem atualizações e juros de 1% ao mês). Naquilo que precisamos prever, de forma matemática e futurológica, considerando a média de vida do brasileiro como sendo de 77 anos, conforme dados atualizados do IBGE, reduzido pela metade em decorrência da condição de saúde do paciente, teríamos uma expectativa de vida, arredondando, de 39 anos; disso, fazendo uma projeção do salário mínimo com a média salarial de 2018 a 2023, vezes 4, considerando que o paciente passasse a receber o pensionamento neste mês de julho de 2023 (também considerando que tivesse 14 anos nessa data), o hospital arcará com a possível monta de R$ 3.573.221,45, fora os valores com fisioterapia, psicoterapia, treinamentos para caminhar, melhorar a coordenação, equilíbrio, reduzir a espasticidade dentre todos os outros tratamento que o hospital deverá arcar até o fim da vida do paciente:
Como não é possível ter taxa zero de infecção, recomenda-se que o hospital se programe economicamente para assumir os custos de eventuais ações judiciais, ou passe a investir mais em meios de controle ou redução das taxas infecciosas, com fins de poder argumentar posição favorável da decisão do TJSP, por exemplo. Não há como acabar com a infecção hospitalar, o que significa dizer que essa realidade faz parte da prestação do serviço e, sendo um risco do negócio, o entendimento é de que, havendo dano, deve-se indenizar, razão pela qual a cobrança e a administração devem refletir esses custos no serviço prestado.
Acrescenta-se, ainda, que a obrigação de fazer prova, nessas situações, é do hospital, e não do paciente, fugindo da regra processual. Ou seja, cabe ao empreendimento comprovar sua ausência de responsabilidade pelo dano sofrido pelo paciente. Dessa forma, considerando que o Poder Judiciário e a doutrina jurídica entendem pela responsabilidade presumida do hospital, cabendo a este provar sua “inocência” e que se trata de prova dificílima, percebe-se a gravidade dos casos que envolvem infecção hospitalar.
A ideia central não é desmotivar ou desencorajar o profissional a empresariar, abrir seu próprio negócio, prosperando profissionalmente e financeiramente, mas conscientizar que certas questões jurídicas, especialmente àquelas vinculadas ao direito do consumidor, trazem ônus significativos ao seu negócio. Razão pela qual você deve estar preparado para que, nessas situações, se possa tem uma consciência negocial e empresarial de que o risco inerente de seu negócio deve ser contabilizado nos valores dos serviços prestados, mediante planejamento consciente e preciso tanto das equipes contábeis, quanto jurídica.[5]
Muitas das vezes, a negociação com paciente é mais benéfica do que um processo judicial longo e demorado, com incidência de juros e atualizações monetárias pesadas. Entretanto, caso queira estender a discussão, de forma a argumentar seus pontos e ser ouvido em suas razões, o poder judiciário existe para esse fim, mas a consciência de que eventual condenação possa pesar no bolso deve estar presente na tomada de decisão do empresário, sendo recomendável o provisionamento dos valores para eventual pagamento da indenização.
Autores: Daniele Queiroz de Souza. Graduada em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP); Pós-graduada em Direito Médico, Odontológico e da Saúde pela USP – Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto; Pós-graduada em Ordem Jurídica e Ministério Público pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (FESMPDFT); Membro Efetivo Observatório Nacional de Direito Médico e da Saúde; Secretária-Geral (2023) da Comissão de Gestão, Empreendedorismo e Inovação Jurídica OAB/DF – Subseção Taguatinga; Membro da Comissão de Direito Médico da OAB/DF; Advogada. danieleqsadv@gmail.com
Flávio Dias de Abreu Filho. Graduado pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB); especialista em Direito Penal e Processo Penal pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) em Brasília/DF; mestrando em direito pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) em Brasília/DF, diretor jurídico da Associação de Empresas de Engenharia e Limpeza Urbana do Brasil – ALUBRÁS, advogado sócio do escritório Abreu&Abreu advogados. diasdeabreu@abreueabreu.com
[1] https://www.camara.leg.br/noticias/429529-frente-lanca-livro-de-sete-toneladas-sobre-leis-tributarias/
[2] É o que se nota pela decisão proferida pela Décima Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul em que a perícia constatou não ter existido conduta do médico que tenha ocasionado a infecção: RESPONSABILIDADE CIVIL. SERVIÇO MÉDICO. CESARIANA. INFECÇÃO. A responsabilidade médica pressupõe a existência de falha ou defeito no serviço prestado. O profissional deve proceder de acordo com o conhecimento da ciência e recursos disponíveis no momento do atendimento. Na espécie, a perícia afastou a presença de defeito no serviço. Recurso de apelação não provido. (Apelação Cível Nº 70052873841, Décima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Marcelo Cezar Muller, Julgado em 25/04/2013)(TJ-RS – AC: 70052873841 RS, Relator: Marcelo Cezar Muller, Data de Julgamento: 25/04/2013, Décima Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 14/05/2013)
[3] TJ-SP – APL: 01011135720088260053 SP 0101113-57.2008.8.26.0053, Relator: José Maria Câmara Junior, Data de Julgamento: 19/03/2014, 9ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação: 20/03/2014
[4] Decisão proferida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo na Apelação Cível nº 32878820018260663 SP 0003287-88.2001.8.26.0663.
[5] Neste ponto, rememora-se que o risco de responder objetivamente, ou seja, sem análise da culpa no cometimento do dano, é da empresa; mas caso seja uma análise da conduta do profissional médico, ainda é necessário averiguar se houve dolo, imprudência, imperícia ou negligencia.