Quando o assunto é processo judicial movido por paciente, diversos profissionais de saúde sentem-se protegidos por uma “barreira” imaterial, seja de esfera pública (Estado), seja de esfera privada (CNPJ). Contudo, isso não passa de uma equivocada segurança jurídica, que gera uma açodada conclusão pela desnecessidade de prudência e prevenção em assuntos jurídicos da saúde.
Qualquer pedido indenizatório por ações ou omissões ocorridas dentro dos hospitais e clínicas, públicas ou privadas, tem como principias partes no processo as pessoas jurídicas, gerando uma ficta sensação ao profissional de que não sentirá efeito desse processo judicial por não estar, diretamente, vinculado à relação processual.
A situação de conforto é ainda mais visível em profissionais da saúde pública, em que o afastamento do polo passivo (demandado) é manifesto pela obrigatoriedade de que, ações judiciais por erros em saúde ocorridos dentro dos hospitais e clínicas públicas, devem ser ajuizadas, obrigatoriamente, em desfavor do Estado, afastando o profissional dessa primeira relação processual, enquanto em demandas contra empresas privadas, a parte autora pode escolher ou não colocar o médico no polo passivo.
Toda responsabilidade que, eventualmente, venha a ser avaliada pelo Poder Judiciário, seja em ações de indenização civil individual ou mesmo coletivas, impõe consequências aos profissionais que estão na “ponta da linha” caso esses profissionais não consigam comprovar a inexistência de ato ou omissão, dolosa ou culposa, que afaste a responsabilização do ente jurídico processado.
Sim! Graças a uma concepção constitucional de proteção aos direitos do consumidor, a você, profissional, cabe o ônus de demonstrar que a técnica/situação/contexto, não são responsáveis pelo ilícito ensejador de reparação monetária ao paciente. A ideia, bem simplificadamente, é que o profissional tem mais facilidade para demonstrar a inexistência do erro, do que o consumidor provar que o profissional errou.
É por isso que a noção de uma “barreira” que protege a ação do profissional é uma noção ardilosa, que pode prejudicar aqueles mais desavisado, que desconhece a chamada “ação de regresso”, principalmente quando ele é chamado a testemunhar no processo judicial que culminou na condenação do ente público/privado.
Ação de regresso é o processo movido pelo Hospital ou pela Empresa quando estes, condenados a indenizar um paciente por ato ou omissão do profissional, buscam transferir o prejuízo sofrido por eles ao agente de saúde que atuou no caso. Ou seja, em um primeiro processo, a pessoa jurídica é condenada, paga a indenização e, em seguida, surge uma segunda ação em que cobra do profissional o que pagou ao paciente.
Por isso, é preciso que o profissional entenda que testemunhar, para todos os ramos de direito, é um meio de prova, sendo um dos instrumentos mais importantes para que uma das partes prove o que alega no processo. A força probatória da testemunha vem do fato de que, por lei, ela tem obrigação de dizer a verdade, sob pena de responder pelo crime de falso testemunho. Isso impede a possibilidade de defesa de um profissional que esteja envolvido diretamente no ato ou omissão averiguado pelo processo. A testemunha somente responde aquilo que lhe é perguntado, sendo certo que sua função, no processo cível, é provar se houve ou não ação ou omissão diretamente ligada ao dano, por meio do nexo de causalidade, não havendo possibilidade de explorar questões outras mais complexas que afastam qualquer suposta irregularidade no atendimento.
Curiosamente, em demandas de reparação cível em saúde, ao se averiguar a participação direta ou omissão no ato questionado, os profissionais são chamados a prestarem depoimentos nessa condição de testemunha, seja do Estado, da empresa, dos próprios autores ou mesmo do juiz que pode convocá-los a prestar depoimento, compromissando-os a dizer a verdade. E uma vez compromissada, o que for dito pela testemunha será considerado como verdade e, dependendo da forma como é conduzido o interrogatório, questões corriqueiras ao profissional, podem ser interpretadas como condutas ilícitas que subsidiam a futura ação de regresso.
E ainda, é mais e mais comum que as vítimas de supostos erros em saúde acionem as autoridades policiais que procedem com aberturas de inquérito para investigação do fato, ao mesmo tempo que movem ações cíveis. Qual o perigo? O profissional que está sendo investigado pelo suposto crime é, ao mesmo tempo, chamado a testemunhar em processo cível, sendo obrigado a responder perguntas deveras tendenciosas que podem prejudicar o direito de defesa e contraditório quando chegada a hora de dar explicações no inquérito penal.
Técnicas e contextos de saúde não são questões objetivas, e nem sempre o tratamento provado eficaz, o será com todos os pacientes. São exatamente essas variáveis, condições, características e contextos que são suprimidos na dinâmica do testemunho cível, e que podem prejudicar o profissional quando for chamado a responder uma ação de regresso, por exemplo.
Apesar de a verificação da responsabilidade civil do profissional de saúde depender de análises específicas, isso pode não ser levado em conta na hora de seu depoimento como testemunha. Repetindo, para se condenar o ente público ou privado, basta a comprovação da conduta, do dano e do nexo de causalidade entre eles. Em contrapartida, para se responsabilizar o profissional é necessário a comprovação da imperícia, imprudência ou negligência, conhecido no direito civil como “culpa”, que somente vai ser avaliada em um cenário de ampla defesa e contraditório, que não existe quando alguém está prestando depoimento na condição de testemunha.
Dessa forma, ao testemunhar em processo cível, tendo em vista a objetividade do que se discute, questões mais amplas do cenário de saúde podem passar desapercebidas, por exemplo, se a conduta seguida pelo profissional foi correta, se seguiu a literatura científica, as práticas normais, se o suposto dano decorreu da própria terapêutica e se o paciente tinha ciência dos riscos da conduta. Esses elementos que descaracterizam o erro, na maioria das vezes, são avaliados na ação de regresso movida contra o profissional, ou mesmo em ações penais, caso o Ministério Público entenda que o erro tenha gerado um ilícito penal.
Portanto, “se o paciente processar o hospital por ato que estive envolvido, já devo de preocupar?”. Não, mas se você, profissional, for intimado para testemunhar no processo, é muito importante que busque orientação jurídica especializada desde a ciência da intimação, pois seu depoimento na condição de testemunha pode lhe trazer prejuízos lá na frente, ainda mais quando se há uma clara possibilidade de responder processos multidisciplinares (cível, administrativo e penal).
O seu direito ao silêncio e a não se autoincriminar dever ser respeitados, mesmo que você seja compromissado a dizer a verdade. Mesmo que o profissional tenha agido corretamente, até que se prove que não houve uma culpa na ação ou omissão, é necessário vivenciar toda a dinâmica e estresse de uma ação civil e/ou penal, que será bem menor caso o agente de saúde, agindo com prudência e prevenção, busque ser assistido assim que tiver conhecimento da existência do processo.
Autores: Daniele Queiroz de Souza. Graduada em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP); Pós-graduanda em Direito Médico, Odontológico e da Saúde pela USP – Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto; Pós-graduada em Ordem Jurídica e Ministério Público pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (FESMPDFT); Membro Efetivo Observatório Nacional de Direito Médico e da Saúde; Secretária-Geral da Comissão de Gestão, Empreendedorismo e Inovação Jurídica OAB/DF – Subseção Taguatinga; Membro da Comissão de Direito Médico da OAB/DF. danieleqsadv@gmail.com
Flávio Dias de Abreu Filho. Graduado pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB); especialista em Direito Penal e Processo Penal pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) em Brasília/DF; mestrando em direito pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) em Brasília/DF, diretor jurídico da Associação de Empresas de Engenharia e Limpeza Urbana do Brasil – ALUBRÁS, advogado sócio do escritório Abreu&Abreu advogados. diasdeabreu@abreueabreu.com