Pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) descobriram que a forma grave da COVID-19 está associada ao desequilíbrio em uma importante via de sinalização do sistema imune. Além de ajudar a explicar em nível molecular por que parte dos infectados pelo SARS-CoV-2 desenvolve uma inflamação sistêmica potencialmente fatal, o achado abre caminho para o desenvolvimento de terapias mais específicas.
No estudo – financiado pela FAPESP e publicado na revista Frontiers in Immunology – foi identificada a ocorrência de uma desregulação no sistema de sinalização da resposta imune mediada por moléculas de ATP (trifosfato de adenosina), uma das principais fontes de energia para a realização dos processos celulares. Além de apresentarem maior quantidade de ATP no sangue, pacientes com a forma grave da doença tinham menor quantidade de adenosina, molécula gerada a partir da degradação do ATP.
“O sistema imune é formado por diversas vias de sinalização que servem para alertar sobre a invasão de um patógeno, por exemplo. Entre elas, existe uma que funciona por meio de moléculas de ATP, que liberam sinais inflamatórios nas células de defesa como forma de atacar o invasor. Geralmente, o sistema imune apresenta também mecanismos para controlar essa inflamação, evitando assim uma resposta muito exacerbada. Porém, quando ocorre esse erro na degradação de ATP, há um desequilíbrio enorme que desencadeia disfunções sistêmicas na resposta imune”, explica Mria Notomi Sato, professora da Faculdade de Medicina da USP e coautora do estudo.
Esse aumento de ATP não degradado, segundo o artigo, resulta em um status pró-inflamatório que desencadeia a chamada tempestade de citocinas, uma inflamação sistêmica potencialmente fatal. “O estudo mostra que, além de contribuir para o desequilíbrio do sistema de sinalização, ocorre uma disfunção na regulação desses componentes. É mais um dos fatores que vão atuar em nível sistêmico ou nos órgãos acometidos pela COVID-19 grave”, afirma Sato.
O ATP é uma molécula que está constantemente sendo produzida pelas células e é degradado no ambiente extracelular por enzimas chamadas ectonucleotidases. “O ATP vira um sinal de perigo a partir do momento que sai das células em grandes quantidades. E quando isso acontece? Quando ocorre uma ativação exacerbada [da resposta inflamatória], ou quando a célula foi lesada gravemente, ou ainda quando há um dano muito grande. O ATP então promove um processo inflamatório que sinaliza para as outras células, ativando-as como uma reação em cadeia”, diz Anna Julia Pietrobon, primeira autora do estudo e doutoranda no Instituto de Virologia do Charité Universitätsmedizin Berlin (Alemanha).
Alteração no eixo ATP-adenosina
No estudo, os pesquisadores dosaram a quantidade de moléculas de ATP e de adenosina em amostras de sangue de 88 pacientes com COVID-19 grave. As amostras foram coletadas entre 2020 e 2021 e, portanto, nenhum dos participantes havia sido vacinado.
“Identificamos que ectonucleotidases presentes na superfície celular e que são responsáveis por clivar o ATP estavam menos expressas nas células de pacientes com COVID, isso principalmente na forma grave da doença. Identificamos, inclusive, uma relação: quanto mais ATP, maior a gravidade da doença”, afirma Pietrobon.
Os pesquisadores também investigaram possíveis alterações em células do sistema imune. “Observamos que algumas células imunes, em especial os linfócitos B, estavam expressando menos CD39 e CD73, enzimas que degradam o ATP”, contou a pesquisadora.
“Pacientes com COVID-19 tendem a ter redução de linfócitos de maneira geral. Porém, observamos que nas amostras de sangue de pacientes graves, além de as células B estarem diminuídas, elas também expressavam menos dessas duas enzimas, o que contribui para a menor degradação do ATP e, por consequência, para a menor geração de adenosina – o componente anti-inflamatório que tentaria regular essa resposta”, explicou Pietrobon.
Com esse achado, os pesquisadores decidiram isolar as células B presentes nas amostras de sangue e fornecer a elas moléculas de ATP. “No experimento in vitro, demos ATP tanto para as células de pacientes com COVID-19, quanto para a de controles saudáveis. Desse modo, descobrimos que as células B dos pacientes geram menos adenosina, quando comparadas às de controles saudáveis. Isso acontece possivelmente porque elas expressam menos enzimas CD39 e CD73”, diz.
Vale ressaltar que a equipe de pesquisadores ainda não sabe se a alteração no metabolismo do ATP é causa ou efeito da resposta inflamatória exacerbada ao SARS-CoV-2, algo que ainda precisa ser investigado em futuros projetos.
Reação sistêmica
Outro trabalho conduzido no Centro de Pesquisa em Doenças Inflamatórias (CRID) – um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID) da FAPESP sediado na USP de Ribeirão Preto – já havia constatado que o quadro mais grave de COVID-19 tem relação com um mecanismo inflamatório conhecido como inflamassoma, que, além de estar exacerbado nesses pacientes graves, não é desativado nunca. Dessa forma, a resposta imunológica que provoca a inflamação também não cessa.
O inflamassoma é um complexo proteico existente no interior das células de defesa. Quando essa maquinaria celular é acionada, moléculas pró-inflamatórias conhecidas como citocinas passam a ser produzidas para avisar o sistema imune sobre a necessidade de enviar mais células de defesa ao local da infecção.
A equipe de pesquisadores que realizou o estudo sobre o metabolismo de ATP afirma que o fato de pacientes graves estarem acumulando essa molécula e gerando menos adenosina pode contribuir com a exacerbação das respostas inflamatórias mediadas por citocinas. “O processo inflamatório desencadeado pela não degradação do ATP ocorre devido a uma descompensação dessa via, que funciona como uma forma de regulação anti-inflamatória. Porém, quando ocorre esse erro no eixo ATP-adenosina, a sobrecarga de ATP vai sinalizar para outras vias de inflamação do sistema imune, culminando na ativação do inflamassoma, por exemplo”, afirma Sato.
Não por acaso, de acordo com as pesquisadoras, são nesses casos em que a regulação do sistema imune está disfuncional que ocorre uma resposta inflamatória exagerada e diretamente relacionada com falência múltipla de órgãos – fatores que levam aos piores desfechos da COVID-19.
Fonte: Agência FAPESP