Avanços na biologia e na química medicinal, juntamente com maiores investimentos em pesquisa, fizeram com que algumas das principais doenças tropicais negligenciadas ganhassem candidatos promissores a novos tratamentos nos últimos anos. No entanto, as verminoses, que dentre essas enfermidades afetam mais pessoas no mundo em números absolutos, tiveram poucos avanços quando se trata de passar dos estudos in vitro para os ensaios pré-clínicos e clínicos.
Essa é uma das conclusões de um estudo publicado na revista Drug Discovery Today por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Guarulhos.
“Mais de um bilhão de pessoas no mundo são afetadas por verminoses, mas essas são as moléstias menos assistidas, mesmo entre as chamadas doenças negligenciadas. Apenas a esquistossomose tem 250 milhões de pessoas infectadas e conta com apenas um medicamento, enquanto as outras recebem mais recursos para buscar opções de tratamento”, conta Josué de Moraes, pesquisador apoiado pela FAPESP que coordena o Núcleo de Pesquisa em Doenças Negligenciadas (NPDN) da Universidade Guarulhos, um dos autores do artigo.
Em 2021, a Organização Mundial da Saúde (OMS) lançou um plano de ação para erradicar ou controlar, até 2030, 20 doenças que afetam uma em cada cinco pessoas no mundo e matam cerca de 500 mil por ano, a imensa maioria pobre.
Entre as metas está o desenvolvimento de novos medicamentos, uma vez que essas moléstias são caracterizadas pela falta de tratamentos eficazes e vacinas.
No estudo, os pesquisadores relatam que, apesar da histórica falta de inovação em fármacos para essas doenças, parcerias entre entidades públicas, privadas e iniciativas sem fins lucrativos têm financiado e acelerado a descoberta de possíveis novos medicamentos, usando estratégias modernas de química medicinal.
“As estratégias para desenvolvimento de fármacos passaram por profundas modificações nos últimos anos. No passado, fazia-se uma triagem aleatória, testando compostos em agentes infecciosos por tentativa e erro. Com o avanço da química medicinal e de ferramentas experimentais e computacionais, hoje é possível fazer uma triagem mais racional antes de realizar os ensaios na bancada”, explica outro autor do estudo, Adriano Andricopulo, professor do Instituto de Física de São Carlos (IFSC-USP) e pesquisador do Centro de Inovação em Biodiversidade e Fármacos (CIBFAr).
O CIBFar é um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPIDs) apoiados pela FAPESP.
Doenças silenciosas
Os pesquisadores observam que grandes avanços têm sido alcançados em possíveis novos tratamentos para leishmaniose, doença de Chagas e tripanossomíase humana africana (HAT), também conhecida como doença do sono. No entanto, o mesmo não ocorre com verminoses como a esquistossomose.
Atualmente, vários compostos estão em testes clínicos para a leishmaniose. Os estudos sobre a doença de Chagas, em contraste, enfrentam dificuldades para progredir da fase de descoberta de potenciais drogas para o estágio pré-clínico.
A complexa biologia do parasita causador da doença, o Trypanosoma cruzi, e sua interação com diferentes tecidos humanos continuam sendo grandes desafios para os cientistas.
“A maior parte das doenças parasitárias é crônica, silenciosa. No caso de Chagas, quando o indivíduo recebe o diagnóstico é porque normalmente já está com insuficiência cardíaca, com o parasita instalado no tecido do coração. O desafio é fazer um medicamento chegar ao T. cruzi sem prejudicar o paciente”, explica Moraes.
Os autores acrescentam, porém, que estudos recentes revelaram novos alvos moleculares e vias de sinalização do parasita que podem contribuir para a descoberta de novos tratamentos.
No caso da HAT, causada pelo Trypanosoma brucei, a aprovação em 2021 para o uso do medicamento fexinidazol representa um grande avanço, por ser o primeiro tratamento por via oral para a doença.
Por sua vez, as doenças causadas por vermes, como os do gênero Schistosoma, estão ainda um passo atrás e nem sequer possuem compostos em fases avançadas de descoberta.
O reposicionamento de fármacos é considerado promissor para as verminoses, como é o caso da miltefosina, conhecida desde os anos 1980 para o tratamento de câncer e atualmente usada contra a leishmaniose.
Recentemente, o grupo liderado por Moraes descreveu como um anti-inflamatório reduziu em mais de 80% a carga parasitária em camundongos infectados com o Schistosoma mansoni.
Além disso, pesquisas sobre aspectos básicos da biologia do verme progrediram e revelaram novos alvos moleculares. São promissores, ainda, os estudos com um composto que age tanto contra os parasitas adultos quanto jovens.
Ainda assim, os autores consideram esses esforços insuficientes, dada a alta prevalência das verminoses no mundo. Por isso, programas multidisciplinares e colaborativos de descoberta de fármacos devem ser reforçados para essas doenças.
“Uma das dificuldades de estudar as verminoses é cultivar os parasitas em laboratório. Enquanto tripanossomas e plasmódios [como o causador da malária] podem ser mantidos com mais facilidade, para os vermes é necessário ter roedores e caramujos, representando os hospedeiros definitivo e intermediário. Consequentemente, os estudos avançam muito mais para outros parasitas”, diz Moraes.
Por conta de dificuldades como essa, o pesquisador ressalta que erradicar essas moléstias demanda, além do desenvolvimento de medicamentos, outras medidas de saúde pública, como diagnóstico, controle dos vetores de transmissão e saneamento básico universal. “As medidas devem ser múltiplas, não se consegue acabar com essas doenças apenas com o uso de medicamentos”, afirma.
Fonte: NEWSLAB