Grupo cria modelo que mimetiza malformação associada à epilepsia grave e abre caminho para novas terapias

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A displasia cortical focal é uma malformação cerebral responsável por um dos tipos mais graves de epilepsia. O tratamento para esses casos ainda é difícil, seja pela falta de drogas eficazes ou por dificuldade de acesso a cirurgia. Agora, um novo modelo humano criado por pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) a partir de células de pacientes abre oportunidades para testar terapias e medicamentos mais específicos.

Em parceria com um grupo da Universidade da Califórnia, em San Diego, os cientistas criaram os primeiros modelos de organoides (cultura celular 3D que contém tipos de células específicas do órgão que se deseja estudar) corticais que mimetizam a displasia cortical focal, caracterizada por uma malformação do córtex. Identificaram mecanismos que podem estar envolvidos no surgimento da anomalia ainda durante a formação do cérebro. Também conseguiram obter registros elétricos que se aproximam da descarga neuronal associada a crises epilépticas em humanos.

Os resultados foram publicados na revista Brain, da Oxford Academic, uma das mais relevantes em neurologia clínica e neurociências. Podem contribuir com trabalhos futuros voltados a testar drogas contra a epilepsia grave, aquela que acomete indivíduos que, mesmo depois de dois anos de uso da medicação adequada e ou de cirurgia, continuam a ter crises frequentes.

Os organoides (órgão desenvolvido in vitro que simula a morfologia e o funcionamento de parte do cérebro) foram cultivados a partir de células da pele de quatro pacientes com epilepsia grave tratados no Hospital de Clínicas da Unicamp. Essas células foram reprogramadas para se tornar células-tronco pluripotentes, diferenciando-se, em seguida, em células neurais.

Ao fazer análises morfológicas, moleculares e funcionais dos organoides, o grupo identificou características desta malformação cortical, entre elas alteração na proliferação celular, hiperexcitabilidade da rede neuronal, presença de neurônios dismórficos e de células “balão”, chamadas assim por causa de seu formato (parecem híbridas, tendo o núcleo como se fosse o de um neurônio e o citoplasma como o de um astrócito).

“Encontramos alteração molecular compatível com o que se espera em vias celulares relacionadas com desenvolvimento e maturação de neurônios. Também demonstramos que é possível gerar organoide cortical com atividade elétrica que se aproxima do que se entende como descarga neuronal associada à epilepsia. Portanto, obtivemos um modelo próximo do que vemos em pacientes, que poderá, futuramente, ser usado para fazer triagem de medicações já existentes”, resume Iscia Lopes-Cendes, professora da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp e coautora do artigo.

A pesquisa foi realizada durante o pós-doutorado de Simone Avansini, no âmbito do Instituto Brasileiro de Neurociência (BRAINN) – um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID) da FAPESP. O trabalho também recebeu financiamento por meio de outros três projetos(17/50404-1, 19?09090-9 e 18/0267-0).

Até então havia uma limitação para estudos desse tipo de epilepsia em modelos animais, incluindo roedores, porque o córtex cerebral é bem diferente do córtex humano e não apresenta esse tipo de malformação. “Na área da epilepsia, esse é um estudo muito importante. Ao longo de anos foram várias tentativas, com erros e acertos. O resultado coroa a busca da Simoni, que manteve algo importante em um pesquisador: a perseverança”, afirma Lopes-Cendes, que é pesquisadora principal no BRAINN.

Doença neurológica sem cura, a epilepsia afeta cerca de 50 milhões de pessoas no mundo, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS). Estima-se que no Brasil sejam 2 milhões de registros.

Os pacientes com casos graves chegam a ter entre 40 e 50 convulsões por dia, com perda de sentido e queda. O tratamento é feito com uma combinação de medicamentos, que nem sempre funciona. A maior parte das drogas diminui a atividade dos neurônios de forma generalizada, controlando as crises, mas provocando muitos efeitos colaterais, como sonolência e alteração de memória. Outra alternativa é a cirurgia, em que é retirada a parte do cérebro afetada pela malformação.

As crises não controladas, além de ter impacto na rotina do paciente, são um grave risco de morte súbita e prematura (chegando a ser até três vezes maior do que entre a população geral). Além disso, aproximadamente metade das pessoas adultas com epilepsia tem outros tipos de transtornos, como depressão e ansiedade.

“Conseguimos mimetizar o desenvolvimento do neocórtex e algumas características básicas da displasia cortical focal. A vantagem é que obtivemos um modelo humano, mantendo o background genético do paciente. Com o organoide é possível estudar cada estágio da malformação, que começa no desenvolvimento do córtex, com repercussão na proliferação e diferenciação das células”, diz Avansini à Agência FAPESP.

Na literatura ainda não está claro como o desenvolvimento cortical anormal pode contribuir para a geração de crises epilépticas no tecido cortical displásico. Em 2018, outro artigo publicado pelo grupo, resultado do doutorado de Avansini, havia sugerido que a desregulação na expressão de um gene chamado NEUROG2, importante para o processo de diferenciação dos neurônios e das células da glia (astrócitos, oligodendrócitos e micróglias), teria um papel-chave no desenvolvimento da doença.

Amostra

Os pesquisadores usaram células da pele de quatro pacientes que não responderam ao tratamento com medicação nem à cirurgia. Um deles chegou a passar por três procedimentos cirúrgicos que resultaram na redução da quantidade de crises, mas ainda sem alcançar o resultado esperado. Os outros três indivíduos fizeram duas cirurgias, entre eles uma criança que começou com convulsões aos 14 meses de idade e teve a parte da fala afetada.

“Nossos dados apontam para uma ruptura molecular na junção das células neuroepiteliais que afetaria alguns neurônios que formam a placa cortical, levando a alterações na rede neural. Essas, por sua vez, tornariam esses pacientes suscetíveis à epilepsia”, afirma o professor Alysson Muotri, da Universidade da Califórnia e um dos autores correspondentes do artigo, em vídeo de divulgação do trabalho.

Para capturar os registros elétricos, os cientistas usaram duas técnicas, sendo uma delas inovadora na área: colocaram o organoide em placa com eletrodos e introduziram o eletrodo dentro do organoide. Esses eletrodos foram desenvolvidos especificamente para a pesquisa.

O grupo também conseguiu trabalhar com organoides de três e cinco meses, o que é difícil de obter porque eles tendem a morrer em pouco tempo por não terem sistema vascular.

“Somos movidos por desafios. Tive um familiar com epilepsia que faleceu em decorrência de uma das crises. Quando vivenciamos isso, sabemos exatamente o que vai no coração das famílias. Isso é o que me move. Conseguimos avançar em muitas coisas, mas ainda é preciso fazer mais, a busca continua”, afirma Avansini.

Segundo a pesquisadora, o próximo passo é buscar entender mais a formação da epilepsia e colocar foco na região proliferativa para entender como as células e o circuito se formam. E, se houver alteração nessa etapa, como é possível interferir no sistema para levar a novos tratamentos.

Fonte: NEWSLAB

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