A fibrose cística ou mucoviscidose é uma doença genética multissistêmica de herança autossômica recessiva que afeta pelo menos 1 a cada 10.000 nascidos vivos no Brasil. A triagem de recém-nascidos para fibrose cística, conhecida como “teste do pezinho”, está disponível desde 1979, tendo sido introduzida em alguns estados, como Paraná, Santa Catarina e Minas Gerais, em 2001 e no estado de São Paulo em 2010, e hoje está disponível em todo o país.
Um novo trabalho alerta que os pediatras devem estar cientes da possibilidade de diagnóstico de fibrose cística mesmo em crianças com teste do pezinho negativo. Na avaliação, feita pela equipe do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (HCFMRP-USP), 3 de 26 casos diagnosticados não tinham sido reconhecidos na triagem realizada em 173.571 recém-nascidos ao longo de cinco anos.
Os pesquisadores documentaram o trânsito das amostras do teste do pezinho desde os postos de coleta até a confirmação diagnóstica do caso positivo e o início do tratamento. Também foram incluídos bebês com triagem negativa, mas com diagnóstico de fibrose cística com base em seus sinais e sintomas clínicos e no teste positivo de cloreto no suor.
A idade ao diagnóstico dos três pacientes com resultado falso-negativo foi de 475, 264 e 118 dias. Quase todos os bebês com fibrose cística apresentaram manifestações clínicas durante o período neonatal, principalmente sintomas gastrointestinais (65,4%), com quatro deles com íleo de mecônio, sintomas pulmonares (46,1%) e metabólicos (34,6%).
Considerando os resultados falso-negativos e o início precoce das manifestações clínicas da doença, os autores recomendam que o pediatra, o médico de família e o serviço de saúde estejam cientes e se mantenham atentos para o fato de o teste negativo não descartar a fibrose cística. Eles destacaram que os sinais clínicos e laboratoriais, e os sintomas sugestivos de doença não devem ser ignorados, visto que um diagnóstico tardio pode ter consequências graves e até letais.
Diagnóstico neonatal
O algoritmo de rastreamento neonatal para fibrose cística baseia-se na quantificação dos níveis de tripsinogênio imunorreativo (IRT) em duas dosagens. A segunda coleta de sangue é realizada caso o resultado da primeira coleta revele alteração. A reconvocação deve ocorrer na terceira ou, no máximo, na quarta semana de vida do bebê. Diante de dois resultados positivos, é realizada a dosagem de cloreto no suor para a confirmar ou descartar o diagnóstico.
O rastreamento neonatal identifica os recém-nascidos com risco de fibrose cística, mas o índice de testes falso-positivos é bastante alto, e o falso-negativo ocorre geralmente nas crianças nas quais a manifestação pancreática da doença não ocorre ao nascimento ou é tardia. Nas três crianças referidas, “apesar de apresentarem sintomas, o diagnóstico foi feito tardiamente, pois os médicos não levaram este fato em consideração. Nem mesmo o melhor programa de triagem neonatal para fibrose cística detectará todos os pacientes ao nascimento”, afirmaram duas autoras do artigo, a Dra. Léa Maria Zanini Maciel, pioneira e coordenadora do Programa de Triagem Neonatal do HCFMRP-USP e professora associada da FMRP-USP e a Dra. Maria Inez Machado Fernandes, [médica,] responsável pelo Ambulatório e Centro de Referência para o tratamento da Fibrose Cística e professora associada.
Elas ressaltam que os pediatras devem ter consciência desse fato e investir no diagnóstico de pacientes com diarreia crônica, que não ganham peso adequadamente, têm pneumonia de repetição e apresentam suor salgado. “Com certa frequência, a criança que nasce com íleo meconial apresenta o teste de triagem negativo, mas o pediatra tem que estar alerta, pois este dado clínico já é expressão da doença. Também, tendo em vista a variabilidade do quadro clínico, alguns pacientes do sexo masculino só receberão o diagnóstico na idade adulta, quando é identificada a infertilidade por azoospermia decorrente da obstrução do ducto deferente devido à doença.”
A incidência de fibrose cística neste estudo, que foi realizado em um dos três centros de triagem do estado de São Paulo, foi muito alta: 1 caso a cada 6.675 recém-nascidos triados. Publicações prévias sobre a incidência da doença no Brasil indicam que no Paraná é de 1 caso a cada 9.520 recém-nascidos; em Minas Gerais, de 1 caso a cada 9.115; e em Santa Catarina, de 1 caso a cada 8.776. A prevalência superior é adjudicada a uma questão étnica-migratória.
“A fibrose cística é mais prevalente entre os caucasianos e os brasileiros descendentes de italianos, alemães e outros imigrantes europeus. Deve-se considerar que a nossa região, nordeste do estado de São Paulo, recebeu grande número de imigrantes italianos que vieram para o trabalho na lavoura do café no fim do século XIX.”
Antes considerada letal na infância, hoje a fibrose cística permite uma sobrevida mediana de 50 anos de idade, principalmente graças ao diagnóstico precoce, ao reconhecimento de formas leves e a uma atitude terapêutica agressiva.
Problemas
Existem poucas publicações para uma análise cuidadosa da situação do diagnóstico e tratamento da fibrose cística no Brasil. O registro do Grupo Brasileiro de Estudos de Fibrose Cística (GBEFC) contabiliza cerca de 3.000 pessoas com a doença, mas os organizadores supõem que é possível que existam muito mais pacientes sem diagnóstico e tratamento adequados. Eles alertam que, apesar de o teste do pezinho ser um exame obrigatório no Brasil, seu acesso ainda não é universal no país e existem casos em que o diagnóstico é feito de forma tardia, após o surgimento dos sintomas da doença, o que pode comprometer o quadro geral de saúde do paciente e seu prognóstico.
Os últimos dados do Ministério da Saúde quanto à cobertura do Programa Nacional de Triagem Neonatal (PNTN) no Brasil foram publicados em 2007. Pesquisadores da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) revelaram (este ano, mas a partir de dados da Pesquisa Nacional de Saúde de 2013) as desigualdades nos testes de triagem neonatal no país. Em referência ao teste do pezinho, os autores observaram uma associação com a renda domiciliar per capita (diminuindo gradativamente de 99,3% a 91,9% no gradiente do 5to quintil ao primeiro), com a região de moradia (99,5% sudeste e 89,0% norte) e com a posse de planos de saúde (sim: 99,4%, não: 95,2%). No estado de São Paulo, a cobertura atingiria hoje cerca de 95% a 98%, segundo a coordenadora estadual do PNTN de São Paulo, Dra. Carmela Maggiouzo Grindler, disse para as Dras. Lea María e María Inés a pedido do Medscape em novembro de 2020.
“Nos serviços de excelência, certamente o falso-negativo é considerado, mas existe uma grande heterogeneidade de serviços no país. Nosso centro faz cursos de reciclagem periódicos para profissionais que trabalham na triagem neonatal, mas deveria ser feita uma divulgação mais ampla, em nível nacional e/ou estadual, encabeçada pelo Ministério da Saúde/Secretarias Estaduais de Saúde, para alertar sobre a importância do teste do pezinho e a respeito das manifestações das doenças triadas. Obstetras, pediatras, profissionais de postos de saúde também deveriam se engajar neste trabalho de divulgação, orientando sobre o momento correto da coleta do teste e sua importância.”
“Para que alcancemos esta uniformidade na qualidade da triagem neonatal em todo país, é necessário que haja mais investimento e fiscalização por parte do Ministério da Saúde”, complementou o Dr. Alberto Andrade Vergara, pneumologista pediatra e coordenador do Serviço de Fibrose Cística do Hospital Infantil João Paulo II (HIJPII), em Belo Horizonte, que não participou do trabalho. De acordo com o Dr. Alberto, um dos desafios da triagem neonatal é aumentar a cobertura do exame público, “uma vez que os exames feitos em laboratórios privados não incorporam a responsabilidade de manter uma linha de cuidado, ou seja, realizar o pronto encaminhamento dos pacientes diagnosticados para a primeira consulta em um centro de referência”. A triagem neonatal pública tem uma linha de cuidado muito bem estabelecida. Ele considera que todos os bebês deveriam ser submetidos à triagem neonatal pública, podendo realizar uma triagem neonatal particular como complementação e não em substituição à anterior.
O Dr. Alberto solicitou do Ministério da Saúde mais investimentos, organização e fiscalização, “deveria realizar uma avaliação transparente da triagem neonatal em todo o Brasil, identificando as dificuldades e limitações, com objetivo de fazer um diagnóstico verdadeiro e propor ações para melhorar a triagem neonatal em todo o país.”Quanto ao teste do suor, haveria também ainda alguns locais no Brasil com dificuldades de realização deste exame: “Trata-se de uma técnica fácil, mas trabalhosa, na coleta do material e examinador dependente. Tanto que o GBEFC promoveu doação de aparelhos para alguns serviços, na tentativa de facilitar e melhorar a confirmação diagnóstica”, comentaram as Dras. Lea María e María Inés.
Elas também consideram importante incluir na triagem a pesquisa de mutações no gene CFTR para que a maioria dos casos de fibrose cística seja detectada precocemente, favorecendo o tratamento precoce e o manejo da doença. Em São Paulo, o teste está disponível nos centros de referência do HCFMRP-USP e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “A incorporação de exames genéticos na triagem neonatal deve ser feita com muito critério e com a participação de geneticistas, para não gerar mais confusão e dúvidas”, opinou o Dr. Alberto.
“O sucesso final deste programa depende da consciência geral da doença, da integração de centros de triagem neonatal dentro de estruturas de cuidados de fibrose cística bem estabelecidas e o envolvimento e interação de obstetras, cuidadores primários, pediatras, centros de referência em fibrose cística e autoridades de saúde. Muito tem que ser feito para que todos os programas no Brasil atinjam níveis de excelência”’, concluíram as médicas.
Fonte: NEWSLAB