Uma pesquisa liderada pelo Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) em parceria com a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) avança na compreensão dos mecanismos envolvidos na patologia promovida pelo novo coronavírus (Sars-CoV-2) no organismo. De forma inédita, o estudo confirma que o patógeno é capaz de ativar uma reação de células de defesa que pode contribuir para a formação excessiva de coágulos sanguíneos observada nos casos graves da Covid-19. Publicado na revista internacional Scientific Reports, o trabalho aponta uma via bioquímica que pode ser um alvo importante para o desenvolvimento de novas terapias.
Células de defesa chamadas de neutrófilos estão no centro do estudo. Através de ensaios em laboratório, os pesquisadores demonstraram, pela primeira vez, que o novo coronavírus é capaz de induzir diretamente a liberação de armadilhas extracelulares neutrofílicas (NETs, na sigla em inglês). Formadas por componentes do interior dessas células, como proteínas e fragmentos de DNA, as armadilhas são estruturas semelhantes a redes, liberadas para aprisionar e destruir microrganismos invasores. O problema desse processo, chamado de netose, é que, quando induzido em excesso nos órgãos vitais, como o pulmão, ele causa danos ao organismo.
Coordenador do estudo, o pesquisador do Laboratório de Imunoparasitologia do IOC/Fiocruz e professor da Faculdade de Medicina da UFRJ, Alexandre Morrot, destaca que os pacientes com quadros graves de Covid-19 apresentam, além das lesões pulmonares, predisposição à trombose, que é a obstrução de veias e artérias devido à formação excessiva de coágulos sanguíneos, e esta é uma das principais consequências negativas da netose.
“Os neutrófilos são as sentinelas do sistema imunitário, que atuam na linha de frente da batalha contra infecções, enquanto o organismo prepara outras respostas, como a produção de anticorpos e respostas citotóxicas ao vírus. Essas células possuem uma gama de reações distintas, como se fossem armas bélicas de diferentes naturezas, e uma das principais são as redes neutrofílicas. Essas redes atuam desde a destruição dos microrganismos até a recomposição dos tecidos lesionados. Porém, há uma consequência deletéria porque as redes neutrofílicas também estão envolvidas na ativação de trombos [coágulos] vasculares”, afirma o pesquisador, apontando que a trombose é uma das complicações mais graves da infecção pelo novo coronavírus. Atingindo órgãos como pulmões, rins, coração e cérebro, o fenômeno está associado à morte por falência cardiorrespiratória ou ainda falência múltipla dos órgãos.
O estudo recém-publicado reforça o corpo de evidências que apontam para a participação dos neutrófilos e especialmente das armadilhas neutrofílicas na Covid-19. Detectado inicialmente na China e confirmado por levantamentos em diversos países, o aumento expressivo na quantidade de neutrófilos na corrente sanguínea é um dos marcadores de gravidade da doença, sendo associado a maior risco de morte. Em pesquisas anteriores, a elevação de moléculas que apontam a presença de NETs foi detectada em pacientes graves e experimentos apontaram que o soro desses indivíduos é capaz de estimular os neutrófilos a liberar as armadilhas.
O resultado foi confirmado na nova pesquisa, que avaliou a exposição dos neutrófilos ao soro de 20 pacientes hospitalizados. “Consideramos casos nas duas primeiras semanas de infecção, quando costuma haver alta carga viral. Observamos que o soro desses indivíduos foi hiper-reativo, induzindo a liberação de NETs pelos neutrófilos. Isso pode ocorrer tanto devido à presença de partículas virais ativas no soro como de substâncias inflamatórias que ativam a netose. Esse achado reforça que a produção de armadilhas neutrofílicas é um fenômeno que ocorre no contexto da infecção”, pontua Morrot.
Os testes realizados indicaram ainda de forma inédita que o novo coronavírus é capaz de estimular os neutrófilos a liberar moléculas chamadas de espécies reativas de oxigênio, juntamente com as NETs. Outra arma empregada pelas células de defesa para enfrentar infecções, essas substâncias atuam diretamente para matar microrganismos invasores e, simultaneamente, estimulam a netose e ativam a cascata de coagulação sanguínea. “Esses resultados alertam que a ativação dos neutrófilos para liberação de NETs e espécies reativas de oxigênio é, possivelmente, uma das causas importantes da trombose na Covid-19. Portanto, é possível aplicar estratégias terapêuticas contra esses alvos a fim de se evitar a resposta mais deletéria ao organismo, que é a formação de trombos”, diz o coordenador do estudo, citando, entre as opções que poderiam ser avaliadas, medicamentos usados no tratamento da fibrose cística, que atuam rompendo as redes neutrofílicas, e antioxidantes.
Ensaios experimentais
Para confirmar a capacidade do Sars-CoV-2 de induzir a liberação de NETs, os pesquisadores realizaram testes em placas de cultura. Em algumas, eles expuseram neutrófilos ao novo coronavírus. Em outras, colocaram um composto químico denominado éster de forbol (PMA), que sabidamente ativa a netose. Foi observado que o vírus estimulou a liberação de armadilhas extracelulares de neutrófilos comparável à molécula PMA. Com o mesmo tipo de teste, os cientistas avaliaram a liberação de espécies reativas de oxigênio pelos neutrófilos. Mais uma vez, os experimentos indicaram ação semelhante do Sars-CoV-2 e do ativador PMA.
Além do IOC e da UFRJ, colaboraram com a pesquisa: Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Hospital Naval Marcílio Dias, Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Neuroimunomodulação (INCT-NIM) e Rede de Pesquisa em Neuroinflamação do Rio de Janeiro. No IOC/Fiocruz, os Laboratórios de Imunoparasitologia e de Pesquisa sobre o Timo participaram do estudo. A investigação contou com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e Fundo para a Convergência Estrutural do Mercosul (Focem).
Fonte: NEWSLAB